Oratorium Age's
Gostaria de reagir a esta mensagem? Crie uma conta em poucos cliques ou inicie sessão para continuar.
Oratorium Age's

Constantinopla By Night
 
InícioInício  Últimas imagensÚltimas imagens  ProcurarProcurar  RegistarRegistar  EntrarEntrar  

 

 Primeiro Dia Completo

Ir para baixo 
AutorMensagem
Leyryel
Admin
Leyryel


Mensagens : 467
Data de inscrição : 17/09/2009

Primeiro Dia Completo Empty
MensagemAssunto: Primeiro Dia Completo   Primeiro Dia Completo Icon_minitimeDom Ago 26, 2018 12:54 am

PRIMEIRO DIA
I


Capítulo I
(O Tinteiro)


As grandes almas devem carregar consigo apenas o que é de mais importante para a natureza humana. Pois os excessos pesam, e dificultam ainda mais os tortuosos caminhos da vida! Uma grande alma deve preencher-se de conhecimento, e através dele, buscar as respostas para uma existência plena. O amor próprio e o amor para com os outros também são essenciais, e deles, não se deve abster. Essas eram algumas, de muitas outras, bagagens que pautavam toda a vida dos monges das terras do leste.

Por debaixo de uma cabeça pequena e calva, toda essa filosofia fervia quente como o sol. E não havia nada que Peter pudesse deixar escapar. E não era pra menos, pois cada livro da cidade, pelo menos os mais importantes, havia sido transcrito pelos seus dedos pequenos e calejados. E apesar de não ser único com aquela tarefa no monastério, tomara para si com tanto amor aquele trabalho, que raro eram os casos dos livros que não dispunham de sua assinatura.    

Porém, há uma guerra que é frequentemente travada entre mente e corpo, que de alguma maneira, buscava pôr essa filosofia em xeque. Nas terras de fogo era bem pior! Pois por lá os homens alimentavam-se de ouro e sangue. Assim era dito, aos sussurros, nos grandes corredores de (nome do monastério). Era uma guerra particular, que cada pessoa travava ao despertar. Peter conhecia-a a sua maneira, quando tarde da noite, o estômago tremia feito trovão graças à fome! Ou então, os ossos que pareciam ranger, iguais as árvores do “Mar de Colinas” pela falta de uma cama confortável. O monge, no entanto, brandia um posto de arauto nessa sua guerra particular. Já que por anos abdicou do conforto para encarar longas e desconfortáveis viagens. E de muitas delas, se orgulhava! Pois dizia a si mesmo, que nem mesmo os príncipes do leste suportariam os anos naquelas condições. “É simples quando se é jovem, quando se dorme em seda e é levado por garanhões mais fortes que ursos”.

Contrário aos jovens cavaleiros de que tanto se queixava, o monge possuía na postura, o reflexo de um passado tortuoso. Seu pescoço era curvado, e as orelhas batiam quase na altura dos ombros. As pernas tortas caminhavam rápidas, no entanto, em passos desgovernados. E apesar de jovem, já apresentava alguns sinais de calvície, e os olhos, pequenos e negros como a noite, sempre apertavam quando precisava ler algo. Por sorte, suas condições físicas eram bem compensadas pelo seu bom intelecto.

Inteligente, dedicado... Foram as palavras que ouviu do reverendo Wagner antes de abandonar sua sala, para tomar parte, com orgulho, da tripulação do “Serpente”.
Seria uma viagem breve, porém, não menos importante. E naquela mesma noite, preparou meia dúzia de livros. E dentre eles, cabe destacar dois: o primeiro, um pequeno volume do livro sagrado, um em meio aos vários que a vasta biblioteca do leste possuía. Um grande companheiro para as noites de aflição. E, por conseguinte, um diário, simples, com o qual fazia suas inúmeras anotações, confissões, e, frequentemente, rascunhava pontos importantes de suas pesquisas.
Algumas noites depois, poderia se sentir privilegiado. Pois não havia necessidade de montar num pequeno animal, nem se contorcer em uma cabine cheia de pulgas, como de costume. Já que embarcara numa das maiores e confortáveis embarcações já vistas nas terras do leste.

Já bem tarde da noite, ao caminhar, encontrou um banco, espaçoso, de madeira negra, bem polida. Fazia bem ao corpo e à alma. Pois além do espaço para esticar as pernas, era bem iluminado, com tochas que cintilavam como sóis em dias de verão.  
Decidiu que tomaria aquele local como escritório, e terminaria suas anotações por ali mesmo. O tempo passou tão rápido, que se não fosse o corpo, numa tentativa de avisá-lo de uma posição que a muito não mudar, teria dormido ali mesmo. O bocejo, por sua vez, ofuscou a vista, quando despertou nos olhos, lágrimas de cansaço. E a cabeça então pendeu para trás, mas logo, retornou a sua posição inicial de pescoço curvo, de quem examinava algo.        

“Havia trevas... e um abismo de águas” — Foi exatamente nesse trecho que pousou os olhos com a mesma atenção de uma águia. Buscando na memória o exato momento em que transcrevera aquelas palavras. Talvez o cansaço tivesse lhe obscurecido a mente, pois deixou que a leitura de outrora se confundisse com o trabalho. E em meio ao relatório de sua viagem, as palavras “abismo”, “trevas” e “águas” haviam sido tingidas com letras grandes e escuras, deixando as demais, pequenas e oprimidas.        

Tais palavras fizeram despertar no monge, uma sucinta curiosidade em seu entorno. E notou que o navio parecia deslizar como se estivesse sendo carregado pelos deuses, em águas que se confundiam com o céu em trevas. E logo pensou na palavra “abismo”, que fazia muito mais sentido naquele instante.

Durante toda a viagem, nenhum pensamento negativo havia lhe tomado o espírito, até aquele momento. Tentou então, ordena-los, de forma a criar boas imagens na mente. Um exercício mental que frequentemente fazia quando algo não lhe corria bem. E por alguns instantes, uma voz pessimista parecia querer gritar, e bagunçar toda sua paz interior. Paz que estaria bem mais consolidada se a viagem não estivesse com dias de atraso. Mas ainda sim, imaginava mil coisas! O mar abrindo como a boca de uma baleia faminta, engolindo o barco por completo. Uma névoa espessa que não permitira ver nem mesmo o próprio nariz. Ou até mesmo uma tempestade furiosa! Tudo estava em silêncio. E havia uma crença de que quando o silêncio se aproxima, há o prelúdio da desgraça. Pois naquele exato momento, a morte caminha, e as almas se calam.        

Naquele local, o mar era deus! Presente até onde se perdia a vista. E a única que ousava quebrar seu silêncio mortal, eram as ondas. Que quebravam no mar distante, e pareciam implorar por socorro, afogando-se em escuridão. A embarcação parecia uma criança frágil nos braços de uma mãe. Seus mastros, quase tocavam as nuvens, que pairavam baixas; e como pequenos braços que buscam nos lábios o conforto de uma cantiga.  

Às vezes, a sensação de que algo ruim fosse acontecer até confortava. Pois o silêncio torturava. E toda aquela expectativa gerava cada vez mais ansiedade. Enquanto Peter possuía o livro sagrado em suas mãos, sentia-se seguro enquanto apertava-o sob o peito com força.

As dúvidas pairavam sob sua cabeça. Teria ele tomado à decisão correta quando aceitou ingressar naquela embarcação? Não poderia ter imaginado que uma simples viagem lhe traria qualquer tipo de sentimento desagradável. De alguma forma, aquela situação começava a lhe tirar a paz.

Aquelas terras não eram bem faladas. E esse era um dos principais motivos de sua viagem. Seu propósito era nobre, e carregado por toda a cultura do leste. “As terras de Fogo” eram bem diferentes. “A terra onde as pessoas morrem pelo ouro, a terra onde os mortos voltam pelo ouro”. — Foi com essa frase que saiu em mente quando pôs o primeiro pé fora do monastério.      

Peter caminhou a passos curtos pelo convés. Seu nariz ardia pela presença de toda aquela neblina que invadia seu corpo rapidamente. O ponto em que se encontrava era alto, e perdia sua claridade a cada metro. O vento se tornava mais forte e o corpo mais sensível.

Em meio a sua empreitada, logo percebeu a presença de um dos passageiros. Que a princípio, foi de difícil identificação, já que a escuridão e a barba impediam que suas feições fossem reveladas. Assim como o capuz, que lhe cobria toda a cabeça.

Não era uma visão agradável, ou confortante como Peter gostaria naquele momento. No entanto, sua face se fez amostra por um instante, quando a luz do fumo que levou a boca acendeu com uma tragada forte! Levando-o em seguida a ser acometido de tosses e pigarros. Que deixou seu capuz pender completamente.

— Já se decidiu? Vai pular ao mar à própria sorte ou vai padecer de loucura aqui mesmo junto comigo? — Balbuciou o homem, enquanto ao término de um sorriso, engasgava novamente.
— Prefiro declinar em ambas. Apesar de temer à segunda. — Peter respondeu de prontidão.
O cheiro de fumo era forte, e mesmo sob a intensa presença da neblina, ainda se destacava rodopiando no ar. O homem era velho, e possuía uma barba ruiva como o fogo, e falhada devido ao excesso de vezes que a queimou com o fumo. A tosse de outrora, não era esporádica. E por diversas vezes, enquanto conversavam, foi acometido delas muito intensamente. Peter até pensou que em algum momento o velho cuspiria os dentes amarelados, de tanto que o esforço pra tossir o afetava.  
   
— Não é a primeira vez que faço essa viagem. E a cada vez, sinto como se fosse a primeira. Ou a última! — Falou com uma voz rouca, após um forte trago. Talvez a frase causasse mais impacto, se não fosse seguida novamente das tosses.
— Isso vai acabar te matando! — O monge disse enquanto apontava redundantemente para o cigarro.  
— Certamente, algo vai! Alguns preferem meios mais divertidos pra isso, já outros... — O sarcasmo do velho ficou estampado no rosto quando dirigiu seus olhos com desdém para as vestimentas e o livro do monge.  





Peter não precisou de esforço algum para captar a mensagem. E criou uma porção de respostas para se defender daquela situação. Mas hesitou em responder. Já que não conhecia aquele homem, e a circunstância não parecia propícia para submeter-se a provocações. As incontáveis viagens criaram no monge um senso de cautela muito eficaz. De certa forma, toda aquela conversa, independente das provocações, lhe causou conforto. Se aquele velho, acostumado com tal viagem, demonstrava-se calmo como uma pedra, talvez não houvesse com o que se preocupar afinal.

— Aproveite bem a noite, monge. E se deseja realmente pular. Jogue antes todas essas porcarias que carrega com você. Afinal, não vai querer engasgar os tubarões. — O homem retornou para dentro da cabine, enquanto sorria e tossia ao mesmo tempo.
No fundo, Peter desejou que fosse o velho caísse. Mas logo retomou os pensamentos e o trabalho. E agora, mais calmo, quase nem percebeu o passar do tempo. O dia raio rapidamente, e Peter dormira por ali mesmo.

Ao despertar, ainda estava sozinho. E não tinha muita noção de quanto tempo havia se passado. Podia ouvir o mar muito mais forte agora, e os estalos que a embarcação fazia ao se mover. Mas ainda nenhum sinal de horizonte ou do sol. E do céu, atravessavam grandes gaivotas que pousavam na proa e logo partiam, desaparecendo na neblina. Peter decidiu então tirar da sua bolsa, pequenas migalhas de pão, que lançava às gaivotas, que bicavam ferozmente o assoalho; era possível sentir o chão vibrando. E pra matar o tempo, deu-lhe nomes. Uma delas inclusive pareceu entender o batismo e demonstrou odiar. Pois grasnava e dava pulos agitados enquanto Peter a alimentava e a chamava pelo nome.

Esse pequeno contato com uma natureza viva, trouxa paz ao coração. Os passageiros daquela embarcação eram bem mais hostis que o homem da noite passada. E Peter evitava-os a todo custo. Enquanto (gaivota com o nome) subiu velozmente e cortou a neblina, Peter finalmente pode contemplar um resquício do céu azul. O animal entregou-se ao vazio, e logo algo tomou forma diante dos olhos. Peter buscou preocupado em sua volta, o livro que havia derrubado enquanto dormia. Como de costume, manteve-o apertado ao peito.        

A embarcação se aproximava de grandes montes! Pareciam como gigantes vivos emergidos do mar. A neblina contornava-os dando a impressão de que se moviam por entre ela. Como se estivessem caminhando nas águas. Não era de se esperar menos das lendas e histórias que se contavam daquela terra. Qualquer pessoa se impressionaria com aquela cena. Conversas de piratas e de poetas, era fácil de imaginar: “Os gigantes levantaram suas botas enormes, em seguida afundaram todos os homens bons com seus frágeis barcos, com apenas uma pisada” – A mente humana, aliada a ignorância e o álcool é capaz de criar coisas incríveis, pensou. Naquelas terras, qualquer coisa que estivesse sob a luz das moedas de ouro, tornava-se verdade. Pois a sinceridade das palavras possuía preço.  

A embarcação diminuía sua velocidade enquanto adentrava em um estreito desfiladeiro. Peter se sentiu confuso, e passou a correr pela lateral do navio na esperança de que ele não fosse rasgado pelas pedras. A sensação não era boa, e os sentimentos da noite passada tomavam seu corpo novamente. Os grandes gigantes de pedras estavam mais próximos agora, e pareciam se curvar sobre a embarcação. As lendas e as poesias que há poucas horas Peter ironizava, faziam bem mais sentido naquele momento.

Haveria uma canção para sua morte? Acreditava que não. Ninguém o desejava naquele lugar. Talvez nem mesmo os deuses. “Eles querem me punir por zombaria” — O monge pensava a todo instante. Estava só do lado de fora, como se fosse o único preocupado com tudo aquilo. O coração palpitava forte. Sentia-se como um protagonista de uma tragédia. As montanhas cresciam cada vez mais ao ponto que se aproximavam. Eram grandes picos avermelhados, como se seus cumes afiados tocassem o céu, fazendo o sangrar. A vegetação visível também era de um tom avermelhado. Grandes pulmões vascularizados.  

Não demorou em que a lateral começasse a arranhar as montanhas. O barulho ecoava na grande galeria escura que o navio adentrava. As águas eram como um manto de tão escuras, e sobre elas, a névoa fina dançava delicadamente. Em pouco tempo, o navio chocou-se contra um grande paredão negro. E apesar do choque não ter sido deveras violento, foi o suficiente para derrubar Peter, que caiu torcendo o pé. E logo, com exceção dos gemidos de Peter, tudo era silêncio. Seus olhos levaram alguns minutos para se adaptar a escuridão. E assim que pode definir as formas do ambiente, e sem poder se levantar de momento, desatou a escrever.

Naquele momento o que lhe restava era transcrever os acontecimentos. Não saberia ele se morreria ali mesmo. Desatou a detalhar tudo o que podia. Porém suas mãos estavam trêmulas, e sem ao menos perceber, esbarrou no tinteiro. A tinta logo se espalhou por todo o papel com uma rapidez insana de quem a suga com uma sede feroz, assim como a terra em dias de chuva. E em poucos segundos, o que era a pesquisa de uma noite toda, agora não passava, como e um abismo, de um enorme e uniforme borrão negro.


Última edição por Leyryel em Ter Mar 26, 2019 8:47 pm, editado 2 vez(es)
Ir para o topo Ir para baixo
https://constantinopla.forumeiros.com
Leyryel
Admin
Leyryel


Mensagens : 467
Data de inscrição : 17/09/2009

Primeiro Dia Completo Empty
MensagemAssunto: Capítulo II (As Sombras na Caverna)   Primeiro Dia Completo Icon_minitimeTer Mar 26, 2019 8:23 pm

PRIMEIRO DIA
I

Capítulo II
(Sem Nome)


Falta escrever...


Última edição por Leyryel em Ter Mar 26, 2019 8:41 pm, editado 1 vez(es)
Ir para o topo Ir para baixo
https://constantinopla.forumeiros.com
Leyryel
Admin
Leyryel


Mensagens : 467
Data de inscrição : 17/09/2009

Primeiro Dia Completo Empty
MensagemAssunto: Re: Primeiro Dia Completo   Primeiro Dia Completo Icon_minitimeTer Mar 26, 2019 8:32 pm

PRIMEIRO DIA
I

Capítulo III
(As Sombras na Caverna)


Foram longas horas desde que a embarcação encalhou. E Peter, começou a se familiarizar com cada detalhe. Sua perna doía muito, e evitou fazer qualquer esforço desnecessário. Havia bem a sua frente, um imponente paredão. E foi nele que sua atenção se prendeu. Sentiu-se pequeno e frágil diante o grande escudo de pedras. E quando com dificuldade, levantava a cabeça, parecia não encontrar o fim daquela placa rochosa que se elevava até um céu escuro e úmido. “Parece querer me esmagar!” — pensou Peter, temeroso por sua situação.

As águas pareciam não dar trégua. Pois era possível ouvir sua fúria ao bater nas rochas, ao longe, e no som das correntezas que invadiam a caverna sem convite algum. E mesmo que a embarcação fosse colossal, Peter ainda temia que ela desmontasse como um frágil castelo de areia. “Não desejo que meu corpo seja sepultado em meio a destroços nem que se perca nessas águas escuras” — A simples faísca de pensamento que levasse a crer numa fé abalável era recriminada no monastério. Não havia como ceder em meio a rezas diárias e o conforto das salas de orações. Porém, tudo aquilo estava além. “Para apreciar o paraíso, é preciso conhecer o inferno” ouviu uma vez num sermão. E aquilo realmente fazia sentido naquele instante.

“Acabarei enlouquecendo se continuar dessa maneira!” — Peter logo se esforçou para levantar, mas uma leve tontura abateu-lhe o corpo, fazendo-o cambalear. Precisou de alguns segundos para se recompor. Em seguida, já estava de pé, segurando com firmeza no que estivesse à frente. A força de vontade surgiu através de pensamentos encorajadores. E por mais que a situação lhe oprimisse, ele lutava.
Evitou que o paredão o hipnotizasse, e tal esforço lhe garantiu analisar seu entorno. Por toda a volta, havia paredões rochosos que se perdiam na escuridão. E quase se deixou abater pela visão, até reparar num ponto acima, no qual longas árvores se curvavam como braços afáveis. E mesmo que a mente, afetada, não garantisse distinguir todas as coisas com definição, Peter pode perceber caminhos por entre as pedras. Até mesmo algo parecido com escadas.

Com muita dificuldade, percebeu que o sol se esforçava para tocar as pedras e iluminar o caminho que acabara de descobrir. Às árvores pareciam brincar, quando balançavam estranhamente, arranhando as rochas e fazendo um som de animal afiando as garras. E se não bastasse, o bater de asas que ecoavam ao fundo chegavam aos seus ouvidos com um prenúncio da morte.







Já conseguindo caminhar e enfrentando seus medos, ousou olhar para baixo, apoiando-se agora, nas laterais da embarcação. Mais uma vez a tontura lhe tomou a mente, pois não imaginava que estaria tão alto. O barco estava levemente tombado, e foi assim que o percebeu, quando quase se sentiu jogado ao debruçar sob o parapeito. Lá embaixo, as águas contornavam o casco como cobras sob a presa.

Voltou num salto para o chão do barco, e respirando com dificuldade se sentiu seguro. Novamente deitado, e com a perna fisgando de dor, sua mente repassava alguns dias antes de embarcar.

Lembrara-se da noite silenciosa, em que os ventos sopravam como as ninfas do mar. Em que fora chamado para uma audiência. E naquela ocasião, em posse de uma lamparina, atravessou o longo corredor do monastério em direção à sala do Mestre. No céu a lua o acompanhava veloz, por de trás de nuvens tímidas. A grossa porta de madeira estava entreaberta. E sem muita destreza, quase se queimou, quando esbarrou às pressas na entrada.
— O senhor me chamou com certa urgência? O que houve? — Peter disse enquanto ainda ofegava, pois a idade não o ajudara. E ao mesmo tempo tentava discretamente avaliar se não havia destruído alguma coisa.
— Não precisava ter se apressado tanto meu caro! — Disse o mestre Debei, que de cabeça baixa, mostrando sua cabeça calva, escrevia algo com tranqüilidade.

Apesar de bem mais novo, o Mestre Nallan Debei era respeitado por Peter, mas fazia o apenas pela obrigação. Pois havia algo na voz do mestre que não o agradava. Como se suas palavras macias fossem as carícias para uma sentença severa. Mas sabia muito bem que essa não era a postura de um homem de fé. E lutava internamente para apartar tais sentimentos.
— Sente-se, serei breve! — disse a Peter, ao notar sua impaciência. Que por sua vez não hesitou em sentar e acomodar o corpo cansado na cadeira. Peter não duvidara de que algo importante viria. Afinal, Debei era como uma raposa, e não era a primeira vez que sentara naquela sala para ter com ele conversas do tipo. Aquele tom de voz, nunca o disfarçava, e o mestre parecia acreditar fielmente que convencia de sua gentileza. Assim pensara Peter, toda vez que o via falar.
— Algo de muito grave? — Perguntou enquanto deixava a vista percorrer a sala, já tão íntima de suas lembranças. E com um sorriso sarcástico o Mestre tocou as mãos de Peter avançando com o corpo mais pra perto e dizendo:
— O que te faz pensar que é algo grave? — e sorriu, enquanto voltava para aposição original na cadeira. — Fique tranqüilo, meu amigo Os deuses são bons e desenham em nossas vidas de forma tão perfeita, que não há com o que se preocupar.
— Não somos amigos. — pensou, quase deixando escapar em voz alta. E desejou por um momento argumentar, porém desistiu. Pois achava em seu íntimo, que, os deuses escolheram Debei para determinar as piores tarefas. Ou que simplesmente o Mestre os usava para tal. E no conflito de acreditar na segunda opção e preservar sua fé, Peter limpou os pensamentos e deixou-se ouvir.






— Recebemos recentemente três cartas do rei, seladas com a insígnia vermelha. Foi por esse motivo que eu o chamei. — O Mestre assumiu uma postura um tanto mais séria. Enquanto pegava dentro de um baú as pequenas cartas.
— Pensei que não era nada grave, como você disse. Os selos vermelhos representam urgência.
— Sim, mas de fato não é nada que requeira nossa preocupação. E se o assunto for de fato urgente, não é nada que nos afete diretamente. Afinal, os tesouros que o rei ama é palpável e possui um valor diferente do nosso. — Peter concordou de prontidão. Pois as histórias da cobiça do rei Ávila viajaram rápidas como notícias de morte.
— O que há nas cartas? — perguntou curioso.
— Apenas uma delas deve lhe interessar. Pois há um convite que desejo que aceite. — O Mestre encarnou novamente aquele tom de voz sereno. E Peter visivelmente se deixou afetar.
— Convite? Porque alguém me convidaria pra algo. Tenho muitas tarefas no monastério. — argumentou.
— Sei muito bem, sou eu que as determino. Porém, creio que será a melhor pessoa para tal. E acredito que gostara. — Peter manteve a testa franzida, porém com um olhar curioso. Sua resistência se devia mais por ser um pedido direto de Nallan. Ele ainda nem mesmo ouvira qual seria o convite, e já mantinha se na defensiva.
— Vamos, diga! — falou.
— Não seja tão ranzinza, vocês ficam com as viagens, e eu com as papeladas. E no fim, ainda sou obrigado a prestar contas com o Rei.
— Precisarei viajar?
— Eu disse que iria gostar, não? — riu em seguida sentindo-se tão confiante quanto o sol. — Aqui está! Sinta-se privilegiado! O Serpente partirá para as terras de fogo em três dias. Esteja pronto!

E foi na calada da noite que Peter assinou o contrato de ida para as terras de fogo! Noite maldita poderia dizer. Pois selou seu destino naquele momento. As lembranças batiam na mente como sinos. E enquanto escrevia, o vento cortava os céus do lado de fora, buscando moradia pelas frestas das janelas, num som melancólico.
Deveria ter ligado os sinais. Aquela noite não era das mais comuns, e deveria saber que eram sinais dos deuses para ele recusar.
As pesquisas eram a sua área. Cabia a Peter viajar e documentar o que fosse necessário para dar insumo aos estudos. Mas havia uma organização para tal. Uma equipe de monges era preparada, os locais eram bem mapeados e muitas vezes até mesmo a segurança era feita pelos guardas dos pequenos condados e seus escudeiros.
Porém não foi o que aconteceu naquela viagem. Pois embarcara em um navio sombrio, de proporções colossais. E totalmente sozinho. Peter condenava a si mesmo por estar naquela situação, por ter aceito tal missão. Tapou os gritos dentro de si de seus instintos, enquanto era levado a ouvir e fazer toda a vontade de Nallan. Poderia ele morrer por aquilo.

Por toda a viagem, Peter manteve-se em reclusão. Evitou troca de olhares e limitou-se a cumprimentos quanto por ventura se deparava com algum dos tripulantes. Que por sinal eram bem poucos, pois apesar do grande tamanho, o navio possuía, em grande parte, locações para comidas, armas, grãos, animais, madeiras, tecidos, escravos, dentre outros. Os poucos salões tripulados, estavam perdidos por entre longos corredores sombrios e estreitos que pareciam mais como criptas.


Arrependeu-se por um momento, por não ter explorado a embarcação. Saberia a quem ou ao que recorrer naquele momento. A perna estava melhorando, e já não sabia mais o que anotar em seu bloco. As anotações lhe foram úteis, pois evitara perder sua mente para a loucura. Mas não poderia mais deixar que o corpo não lutasse para sobreviver. Finalmente então, levantou-se, ainda com dores, porém determinado. E sem medo de encarar as portas a sua frente, destroçadas com madeiras escuras e farpas que lembravam grande dentes afiados. Encarou os medos e a dor, e aventurou-se a explorar o interior do grande navio.
— Foram longos e dedicados anos de minha vida agindo em nome de minha fé... não deixarei que tudo se perca. — falou baixinho, tentando convencer a si mesmo de que sua fé e força iam além de sua vontade. E mesmo que o terror o corroesse do fundo da alma, ainda desejava viver.

Caminhando com dificuldades, o corpo parecia pesar mais do que o habitual. O chão escuro de uma madeira musgosa e verde estava escorregadio. Cada passo era dado com muito cuidado, pois não queria que uma queda piorasse ainda mais seu corpo debilitado. Peter buscava manter a mente sadia, e por um misto de sorte e azar, não percebeu que gostas de sangue saindo de sua perna ferida seguiam seus passos.

Decidiu também, por precaução, não adentrar muito, pois a mente ainda lhe permitia raciocinar ao ponto de não cometer o erro de se perder, ou cair em algum ponto do navio ainda mais danificado pelo acidente. Ficava imaginando se os demais estavam perdidos, ou mortos. A fé e a esperança criaram a opção de que todos haviam encontrado uma saída segura para além daquela caverna. Talvez tivessem escalado e agora olhavam do topo da montanha as terras que iam além do leste, e deixavam para trás o mar e os destroços do barco naquele buraco úmido.

Tal pensamento o fez prosseguir. No entanto, a respiração ficava mais pesada, pois o ar dentro dos corredores era limitado. E o caminho estreitava-se a sua frente, enquanto a escuridão o perseguia por de trás. O calor também aumentava, e podia ouvir barulho de água jorrando através das paredes de madeira. Volta e meia o corredor parecia se contorcer, e um estrondoso som de ranger de tábuas estourava ao longe. A noção de tempo já o havia abandonado. E sem mesmo perceber, caiu num sono pesado.
Ir para o topo Ir para baixo
https://constantinopla.forumeiros.com
Leyryel
Admin
Leyryel


Mensagens : 467
Data de inscrição : 17/09/2009

Primeiro Dia Completo Empty
MensagemAssunto: Re: Primeiro Dia Completo   Primeiro Dia Completo Icon_minitimeTer Mar 26, 2019 8:45 pm

PRIMEIRO DIA
I


Capítulo IV
(As Terras de Fogo)


E saia das terras mais altas, um grande rio. Batizado de Éden pelos reis antigos. O primogênito de quatro outros filhos que a natureza pôs ao mundo para regar as Terras de Fogo; nome atribuído devido ao seu solo avermelhado e fértil. O grande Éden cortava quase toda extensão do reino de Ávila, desaguando bem ao longe, nos mares solitários. Nas épocas de chuvas, o grande Éden não se limitava a ostentar seu poder. E dividia as terras como uma espada, levando consigo grande parte da costa. “Quando há fúria no Éden, não há ouro” — assim diziam. Pois o grande rio tragava os mais ousados e assegurava que seus corpos permanecessem sepultados nas mais profundas rochas com sua cobiça dourada.

O reino de Ávila estava assentado sob belas e ricas terras. A vegetação que variava no caminho das viajantes; as grandes montanhas que saltavam os olhos; os rios pequenos que dançavam delicadamente no contorno das pedras; e o delicioso ar quente que acariciava o rosto com a brisa do mar. Porém, esse paraíso não possuía terras avermelhadas apenas pelo toque artístico dos deuses. Pois nem mesmo o grande Éden pode lavar as manchas de sangue do passado.

(... inserir trecho sobre as guerras...).

Das muitas estradas, quase todas davam caminho certo ao centro. Os mais pessimistas, ou realistas, dependendo de quem fala, indicavam: “siga o caminhos dos corvos que encontrará a cidade”. Pois havia nela um romantismo de progresso que só era debatido nas mesas e nos grandes jantares das famílias mais nobres.



Nos dias mais recentes, a natureza parecia declinar aquelas vozes. Pois escondia seu sol por de trás de nuvens pesadas e espessas. E um grande céu cinza oprimia sob as cabeças dos inúmeros e diversos comerciantes daquela tarde. As vozes se misturavam em idiomas diversos, e os rostos se confundiam com variados tons de pele. Havia barracas espalhadas por vias estreitas, feitas de chão de pedra. Por volta e meia os soldados do rei, com suas vestes cor de vinho, tilintavam suas algibeiras enquanto o sorriso sarcástico falava por eles. E havia nos comerciantes, um curvar de cabeça e um braço estendido com uma rúpia de ouro.







— Pivete! — o soldado soltou aos gritos após uma trombada com uma criança, que fez várias moedas tombarem ao chão, rolando por de baixo das barracas com velocidade. E na mesma velocidade, o garoto ao chão tentou apanha-la com as mãos pequenas e magricelas. No entanto, houve um grito agudo e um estalar de ossos, manchando o chão e a moeda de vermelho, no momento em que um dos soldados baixou sua bota de metal com toda a força, interceptando-o. Alguns outros pequenos tentaram ajudar por instinto. Mas logo foram reprimidos por golpes de cabo de espada.

E por todo o caminho que faziam, o ouro era trocado por violência. Tais cenas se tornaram tão comuns naquela época, que escapavam facilmente dos olhos e da piedade dos demais. O vermelho do sangue não se comparava ao brilho do dourado. E as vozes que disputavam em coro a oferta de produtos, abafavam o choro da dor. Aquela, dentre as várias demais feiras, era a principal. E sua localização privilegiava-se de um porto bem estruturado.

As embarcações chegavam aos poucos, porém frequentemente. E no desembarque era possível ver a grande maioria com os traços do povo do leste. Olhos que buscavam naquelas terras novas conquistas, tão bem poetizadas além mar. A viagem por aquelas águas era perigosa. E tanto o ingresso quanto o tempo eram valiosos. Pois as poesias não se limitavam a belas canções, como também estendiam se as tragédias. Fendas que sugavam navios, montanhas que esmagavam barcos, rotas fantasmas que ludibriavam os mais experientes viajantes e saqueadores por toda a costa. Preenchiam o terror dos versos.

Ventava muito naquela tarde. E mesmo as coberturas grossas das barracas se rendiam a força do vento. Numa dessas barracas, dois homens, um jovem de idade mediana, com cabelos negros e finos, lutava para manter a lona segura em seu lugar, e um velho calvo, que tentava ajuda-lo a qualquer custo. As vendas eram cada vez mais afetadas, pois o vendaval abafava as vozes, derrubava os produtos e afastava os compradores. Grande parte deles, inteligentemente, e contra a vontade, desfaziam suas amarras, pois não adiantava mais lutar contra a tempestade que certamente se aproximava.
— Vamos jogar tudo na carroça, rápido! — disse o velho, ao perceber que seria mais útil usando o intelecto.
— Estou fazendo o que posso pai! — respondeu Cain, logo em seguida, enquanto se esforçava ao máximo. O jovem não era nem de longe uma pessoa atlética, porém, era habilidoso, e desatava os nós, embrulhava caixas e as organizava com muita facilidade. O pai o reconhecia por isso, e o admirava! Mas fazia seu papel ao pressioná-lo daquela forma.
— A chuva não vai esperar garoto. Não quero perder todo meu trabalho para uma tromba d’água qualquer. — disse, enquanto na mente repassou as horas de trabalho, e as noites mal dormidas.
Jonas, o velho, não transferira as habilidades manuais para o filho a toa. Pois ele mesmo também as possuía. Era seu trabalho mapear o máximo de locais possível dentro do reino, e reproduzi-los, comumente em peles, através de mapas muito bem detalhados. E ele o fazia com maestria, chegando até mesmo reproduzir alguns nas paredes do próprio castelo de Ávila.




Jonas recorda-se daqueles dias como se fossem recentes. Havia sido escoltado pelos guardas vermelhos junto de Cain. Que na ocasião, estava tomado pela ansiedade que aquela idade frequentemente causa. E não podia negar que sentia a mesma ansiedade do filho, já que seria a primeira vez a por os pés no castelo. E enquanto o filho corria pelos longos corredores, ele foi ter com o rei a instruções de como e onde pintar o mapa. E foi num paredão rústico, próximo a uma janela alta, que dava vista acima das grandes árvores indo até ao longe das montanhas que obteve sua tela.

Foram vários dias de trabalho. E mesmo admirado com a vista, ficou exausto. Os guardas o cobravam constantemente, e poucas horas de serviço pareciam dias para ele. Contrário de Cain, que se divertia e que ainda questionou, no último dia, quando poderiam retornar. — Em breve filho! — respondeu somente para evitar mais desculpas.
O trabalho lhe rendeu uma boa fama. Porém, as vendas não iam bem ultimamente. Esperava ele que as chuvas criassem novas rotas, novos caminhos para assim atualizar seu trabalho. Mas ela só afastava os viajantes do leste e aqueles que buscavam nas terras de Ávila uma chance de encontrar ouro.

— Quase não vendemos nada. Acredito que as pessoas estão perdendo a fé nessas terras. — disse Cain ao fim do árduo trabalho, e enquanto subia na carroça. — Ou mesmo os deuses estão perdendo a fé nesse povo — completou.
Jonas vira no filho uma angustia que o afastava muito das lembranças do garoto feliz daqueles dias. Apesar de ainda ver o brilho de seus olhos verdes, que de alguma maneira parecia mudar de cor conforme seu humor. E seus lábios, marcados pela eterna mania de mordê-los quando estava angustiado.

O cavalo magricela de pelos negros e olhos saltados fizera um tremendo esforço para por a carroça em movimento. Mas após alguns gritos e chicotadas, deram inicio ao retorno pra casa.
— Temos sorte em pegar essa trilha fechada. Não sofreremos tanto caso a chuva nos alcance. — Jonas disse ao subir na carroça, sendo ajudado pelo filho.
A trilha era realmente fechada por grandes árvores de troncos largos e folhas longas, de um lado, e do outro, a mesma vegetação, porém um pouco mais tímida, e que dividia a estrada de um pequeno desfiladeiro com pedras robustas que davam caminho até as areias escuras da praia.

A carroça avançava em seu limite, trepidando com o chão rochoso, enquanto o pobre cavalo relinchava pelo alto esforço. Uma pequena comitiva formada pelos outros comerciantes também se aproximava. Alguns já bem mais rápidos, devido suas carroças mais fortes e cavalos mais saudáveis. E com eles, galhos e folhas aos montes, trazidos pelo vento.

— Não vamos chegar a tempo! — disse com preocupação, ao ver o pai dando sinais debilidade pela corrida. — Segure-se em mim!
— Mantenha o ritmo. — disse com dificuldade. — Estamos rápidos, mas não seguros o suficiente. — Jonas buscava convencer-se de que tudo estaria bem. Havia tempos que fortes chuvas não atingiam aquelas terras. E a gente comum, que vive em pequenas casas e batalha arduamente para sobreviver, claramente não estava preparada para tal.


Cain confiava muito no pai. Quando garoto, frequentemente recebia tarefas das quais julgava além de suas capacidades. Numa ocasião, ainda pequeno e com os braços finos, sentiu-se injustiçado ao ter de carregar um punhado pesado de lenha para casa. A tarefa lhe hematomas enormes nos braços, assim como muitas feridas de insetos. Porém, o pai o encorajava a carregar com firmeza, sem derrubar nenhuma sequer. Ele quis chorar, desistir, queria a todo custo sentar ali mesmo no caminho e deixar os braços livres como folhas ao vento.

— Sou um garoto, fraco e magro! — disse a si mesmo. E por todo o momento sentiu-se injustiçado. Ao presenciar o pai que andava livremente, com as mãos apoiadas apenas em um cajadinho fino. Sua vontade naquele momento era de maldizê-lo aos deuses. Mas foi ao chegar à cabana, que tudo passou a fazer sentido. O pai pediu para que ficasse sentado perto da lareira, enquanto ele cozinhava algo dentro do caldeirão. E após algumas horas, um prato com um ensopado delicioso lhe foi servido. Cain o degustou em poucos minutos, e nem mesmo lembrou das dores que consumiam seus braços. O pai não tocara na comida até ver o filho satisfeito. E com esse pequeno sacrifício a criança aprendeu o valor de seu esforço.

A carroça continuava marchando com dificuldades, e o vendaval já ultrapassara metros à frente. Cain já não era tão frágil como quando carregou a lenha. E apesar de ainda magro, conduzia a carroça com habilidade e segurança. E em momento algum deixou sua atenção ser tomada na preocupação com pai. O vilarejo ainda estava distante. E o cavalo parecia fadigado e inquieto.

— Se tiverem sorte, pelo amanhecer serão enterrados com nomes nas cruzes após a chuva levar seus corpos até a praia. — disse um dos comerciantes ao ver pai e filho parado perto da carroça. — Jonas, certamente não entendeu uma palavra, pois era velho, e o mau tempo não permitia que ouvisse. Cain, não mediu olhares de reprovação, e continuou sua tarefa com o cavalo. Amarrava de um lado, puxava de outro, e calçava alavancas para livrar a roda das pedras.

O vilarejo ainda estava distante. E os pés escorregavam ao empurrar a carroça. Enquanto o cavalo ficava cada vez mais inquieto. Jonas tentava acalma-lo e sem sucesso puxava as rédeas, apenas agitando ainda mais o animal. Não demorou até que uma das rodas cedeu.
— Mas que droga! — Cain não segurou a raiva. Mas logo se conteve antes de terminar o chute na carroça que ameaçou dar.
— Aqui! Ajudem! — esforçou-se para chamar a atenção dos grupos que passavam. Seus cabelos negros e lisos já escorriam pelo rosto junto à chuva. E sua voz, cansada e limitada pelo tempo, deu lugar aos gestos. Algumas carroças passaram rápidas por eles. Até que finalmente uma delas pareceu se compadecer.

Era uma das grandes, com uma lona negra como a noite. Puxada por dois cavalos robustos, de mesma cor. Cain não reconheceu os comerciantes que ali estavam. Eram dois vestidos de verde musgo e com capuzes que cobriam toda a face. Um deles desceu rápido. Tinha uma boa estatura e não se conteve ao pegar as malas mais pesadas e jogar na parte de trás da carroça. Cain ajudava o pai enquanto a luta contra o tempo começava.
— Não será possível carregar tudo isso. Vai precisar deixar algumas para trás. O estranho falou enquanto apontava para os baús. Cain, com uma face de desagrado, pensou em replicar, mas logo desistiu, aceitando a situação.
Ao subirem na carroça, os cavalos partiram rápidos. E a preocupação não deu tempo para formalização ou agradecimentos.
— Perdemos nosso cavalo e metade de nossos produtos! — pensou Cain, consigo mesmo, enquanto ao olhar para trás, via as nuvens pesadas escurecerem o caminho. E mesmo sem reparar no rosto do pai, sentia que estava amargurado com as perdas.
Foram percorrendo a trilha que se estendia por entre arvores e muros naturais. Por caminhos que se estreitavam, e obrigavam a diminuir o ritmo. Nos céus, as nuvens pareciam rodear como urubus famintos. E a vontade de cair no sono era evidenciada pelas inúmeras vezes que a cabeça pendia até quase os joelhos.
— Se cair da carroça, eu não volto pra buscar! — brincou a mulher que se mostrara por de baixo do capuz. Cain não havia percebido a principio, pois sua voz era rouca, e tanto a chuva quanto a raiva não lhe permitiram distinguir. Aparentava ser alguns anos mais velha que Cain. Possuía cabelos curtos e bem escuros, que deixavam destacavam alguns incomuns e poucos fios brancos. Seu rosto quadrangular também era bem masculino, podendo se passar por um homem facilmente.

Sua companheira também era uma jovem mulher. Porém, bem mais delicada e de aspecto frágil. Com cabelos longos e descuidados. De olhos pequenos e inexpressivos. Falava bem pouco, mas respondia com muita atenção e boa vontade quando a companheira, bem mais comunicativa, se dirigia a ela.
— A vida é cheia dessas ironias não é? — disse Agnes, quando percebeu que os olhos de Cain lutavam entre se manterem abertos ou avaliar as duas enquanto conversavam.
— Acho que o destino e os deuses estão confundindo sua mente! Nós somos duas bruxas enviadas para roubar seu destino! — Agnes riu com a própria piada. E o sarcasmo saiu de sua voz grossa com muita alegria.
— Fique tranqüilo, não vamos cobrar pela ajuda. Não muito! — completou.
Cain estava exausto para discutir ameaças ou mesmo responder aos joguinhos da mulher. E mesmo tentando lutar contra o corpo, acabou caindo no sono.

Algumas horas se passaram desde o ocorrido, e ao chegarem à vila, a noite já havia tomado seu lugar. Naquele momento já estavam totalmente protegidos das fúrias dos ventos e do pesar da chuva. Na vila, uma proteção natural circundava as casas. Eram árvores pesadas aliadas a grandes rochas que se viam por toda a parte. E os ventos frequentemente cessavam ali mesmo, naquelas pedras.
— Não temos como pagar sua ajuda! — disse Cain, enquanto guiava Agnes, que ordenava seus cavalos a seguirem uma pequena estrada, dando acesso ao casebre de pai e filho. Ainda chovia, porém bem menos, mas ainda sim, os raios cortavam o céu dando vista dos metros à frente.
— Ofereça nos abrigo, alimento, e leito por essa noite que considerarei não levar suas moedas. — disse com seriedade. E mesmo que o sarcasmo praticamente movesse Agnes, ela sentia cansaço, e demonstrava preocupação com a companheira.
— Estão de passagem pelo visto? — Jonas se pronunciou após muito tempo em silêncio, deixando em seus olhos todo julgamento de quem reluta em confiar em estranhos.
— Garanto que passaremos mais rápido que as chuvas. — disse, — pessoas como vocês não costumam visitar o lugar do qual viemos.
— Devem achar que essas terras são as soluções de seus problemas, não? — completou Cain, devolvendo um pouco do sarcasmo que recebera.
— Menos árvores, menos montanhas, menos chuvas e menos ouro de onde venho. E não é esse último que nos move, se é o que pensa. Somos mulheres, mas não somos ingênuas, e não temos as mesmas aspirações pelos quais muitos dos homens do leste atravessam o mar.
— Imagino que não! Eu acredito no seu coração bom e na satisfação que possuem em ajudar quem necessita. Conheci muitas pessoas assim na vida! — disse Jonas com ironia. Agnes então sorriu.
— Você é um velho muito amargurado! — Cain olhou com reprovação. E ainda que a conversa ficasse entre seus altos e baixos, sentiu interesse e até uma confiança irracional na mulher. Por não ter jamais saído daquelas terras, a curiosidade sobre o que se passava além mar inflava dentro de si.

— É educado responder com sinceridade quando se é hospede nessas terras! — disse Cain, após todos reunidos e já seguros da chuva que apertava cada vez mais forte lá fora.
— Está criando suas próprias regras não é garoto? Percebe isso Beatrix? Ele está nos tomando por ingênuas! — disse Agynes, ao levantar a taça de vinho que lhe fora servida minutos antes, e que por sinal já estava quase vazia.
— A casa de cada um é seu reino, poderia me dizer um pouco mais sobre o seu! — retrucou. Pois naquele momento o tom da conversa já havia se aquecido, assim como o ar da casa, tocado pelo calor da lareira.
— Se é curiosidade sobre o que há além desse matagal e dessas pedras. Garanto que não há nada de novo. Acredito até que se decepcionaria. E outra, passei mais tempo em mar do que em terra. Portanto não tenho muito mais a dizer que minha percepção de mundo formada por noite ou dia, tempestade ou sol, ondas ou calmaria.

Jonas já havia se entregado ao cansaço, e dormia um sono pesado em um banco de madeira forrado com peles grossas de cervo. Cain aproveitava a oportunidade para conversar sem as tantas repressões vindas do pai. Que julgava as mulheres a cada frase. O efeito do vinho também trazia à conversa um clima mais amigável.
— Não nego que sinto vontade de descobrir novos mundos. — o tom dessa frase saiu quase como uma confissão guardada a sete chaves. — Vocês são irmãs? — completou.
— Com essa carinha de anjo? — Agynes tocou o rosto de Beatrix, comparando-o com o seu, deixando muito evidente a diferença entre as duas. — Ela é minha protegida! — completou.








----------------------------------------- escrevendo -------------------------------------------






.
velho, e não pode mais sair, por esse motivo talvez eu tenha ajudado vocês. Essa empatia pelo seu pai me fez lembrar-me do meu. Beatrix me acompanha desde então.
— Ela é sua irmã?
— Não se preocupe garoto! Não vou torturá-lo por um mapa do tesouro. — ela sorriu sarcasticamente enquanto deitou a cabeça no colo de Beatrix. E já embriagada, fechou os olhos ficando em silêncio.
Do lado de fora, a tempestade começara. O vento de outrora chegara com raios e fortes rajadas de água. Can mantinha agora seus olhos no fogo que estava quase se extinguindo. O velho havia caído no sono. A conversa levou com ela a noção de tempo, e nem mesmo sabia quanto já havia bebido. Logo, Can sentiu-se sonolento também, e caiu no sono ao lado do pai.
Ir para o topo Ir para baixo
https://constantinopla.forumeiros.com
Leyryel
Admin
Leyryel


Mensagens : 467
Data de inscrição : 17/09/2009

Primeiro Dia Completo Empty
MensagemAssunto: Re: Primeiro Dia Completo   Primeiro Dia Completo Icon_minitimeTer Mar 26, 2019 8:49 pm

PRIMEIRO DIA
I

Capítulo V
(A Noite Mais Escura)


Os reinos são protegidos por homens, através de suas lanças, torres, muralhas. Mas há também os reinos mais abençoados, que a própria natureza tratou de cuidar. Criando uma sensação de segurança ainda maior graças aos seus cumes que quase tocam o céu, ou seu labirinto de florestas que causava medo nos mais diversos invasores. Pois não é fácil enfrentar o que mãos divinas criaram.

A fenda era um grande mistério para os povos que ouviam falar dela. Alguns diziam que era a passagem direta para o inferno. Pois engolia barcos, e exércitos inteiros. Já outros relutavam em acreditar que algo de sobrenatural pudesse se assentar ali! — Basta um assobio diferente numa gruta, que vocês já criam uma religião em cima disso! — disse Borto, um filho de ferreiro que seguiu os passos do pai, e dos outros antes dele, numa conversa de taverna.

Muito além das rotas de comércio, a região era de difícil acesso, devido às inúmeras armadilhas naturais; valas com profundidades assombrosas, solo arenoso, e uma floresta densa que mais lembrava um labirinto. Nos últimos dias de guerra, ainda quando a coroa pesava sob a cabeça de Albion, os soldados vermelhos usavam dessa vantagem para liquidar as tropas do sul. E o rei conhecia suas terras como ninguém. Qualidade não herdade por Ávila, seu filho.

A água fria escorria por de baixo do seu corpo, como sangue. E por um momento imaginou que seria mesmo sangue que o abandonava. Peter havia caído numa câmara abaixo do primeiro piso. Seu corpo estava praticamente paralisado. Apenas a cabeça mexia de um lado para outro com dificuldade. O barulho que ouvia antes agora era mais evidente, e pensou consigo mesmo, que as águas iriam invadir todo aquele local, e mata-lo afogado. Tomado por um desespero súbito, buscou forças no seu íntimo, porém, foi impelido pela dor. Ás águas entravam em seus ouvidos, causando um incômodo absurdo. Naquele momento Peter quis chorar, queria por qualquer coisa estar longe dali, seguro, confortável.

Enquanto a posição lhe obrigava a ficar com a cabeça para cima, podia ver a madeira despedaçada com o vão pelo qual caiu sem perceber. — Fui engolido por esse barco horrível, e vou morrer aqui mesmo! — pensou. Iria morrer e os deuses não se importavam com isso.
— Estive por anos dedicando minha vida aos deuses. E agora Eles me esqueceram, ou talvez essa terra amaldiçoada esteja longe de seus olhos! — Peter falava sem ter ninguém para ouvir. Sentia dor pela perna machucada, dor pelo corpo que agora parecia completamente quebrado, e por sua alma, que duvidava a cada instante de sua fé.



Havia uma estranha movimentação no barco, as paredes pareciam se alongar para cima de Peter. Não sabia ele se aquilo estava ocorrendo realmente, ou se sua mente estava sob enfeito daquele ar embebido com um estranho aroma de frutas apodrecidas.

— Devo estar próximo ao bar daqueles pecadores! Provável que conheceram a morte em sua mediocridade, e com o sangue impregnado de álcool? Pensando bem, talvez fosse esse o fim que realmente desejavam, e a felicidade tocaria seus corações nos últimos segundos de vida! E quanto a mim? Estou bem longe de morrer velho, numa sala quente onde o fogo da lareira aqueceria minhas bochechas geladas do toque da morte. — os pensamentos torturavam Peter assim como a dor que sentia.

As gotas que caíam do piso superior, bem ao seu lado, pareciam como trovões quando tocavam a água. E a madeira como que contorcida de fora para dentro rangia mais alto. Já as dúvidas sob o que viria depois pairavam no ar; talvez as águas subissem até o nível de afogá-lo, ou o chão abaixo dele cedesse, levando-o para alguma estranha correnteza, ou o teto cairia sobre si esmagando-o. Todas as opções lhe pareciam péssimas.

Passaram-se então, minutos, horas talvez. E o que sua percepção podia assimilar naquele instante era apenas o silêncio. Era estranho pensar como a situação age dentro mente de um homem. Quantas vezes, ele esteve diante de si mesmo, em contemplação, com o espírito repleto de fé, enquanto isolado por horas, rezava para os deuses em busca de iluminação, de respostas. Eram horas das quais ele mal sentia passar. Agora se sentia um tanto perdido, e tinha medo de quais sentimentos mais surgiriam de dentro de sua alma. Medo de descobrir cantos tão obscuros que ele jamais havia sonhado. E julgava que cada minuto parecia um eterno tormento, pronto para afligi-lo com alguma dor insuportável ou algum pensamento aterrador.

Seus olhos pareciam acostumados com a escuridão. E agora podia ver ao seu redor com mais nitidez. O local que estava, lhe parecia um grande salão, local esse que não chegara a entrar quando ainda estava em viagem, um espaço reservado para muitas pessoas, não sabia ao certo. Nas laterais, grandes arcos de madeira subiam até o teto rachado, lembrando muito os das grandes igrejas do leste. Alguns decorados com desenhos confusos, que não lembrava forma de nada ou caligrafia alguma. Baús robustos estavam alocados por todos os lados, e alguns derramavam um liquido vermelho e espesso. São barris com sangue? — pensou em primeiro momento. Mas logo associou ao cheiro de frutas que sentira a pouco, e concluiu por ser vinho.

Havia janelas redondas como olhos em todo o arredor. Estavam firmemente fechadas, e não podia se ver por elas, pois eram sujas e escuras como pedras. Não se via portas aparentes por ali, talvez escondidas próximas de algum dos barris — pensou Peter! Nem escadas ou alçapões! Isso tudo contribuiu para que Peter focasse sua atenção mais aos destroços sob sua cabeça, que dariam acesso ao piso superior. E era possível de se ver, volta e meia, um leve e quase imperceptível dançar de sombras.






E enquanto os olhos, fixos, buscavam incansavelmente por uma solução que pudesse livrá-lo daquela situação, algo curioso, e singularmente estranho lhe chamou a atenção. As sombras que vagueavam de um lado a outro, como mariposas, pareciam aumentar o tamanho. Peter movimentou sua cabeça o máximo que pode, na tentativa de decifrar aquele evento. A princípio, apenas o vento que vinha da superfície chegara com dificuldade até as camadas mais baixas do navio, e por ele, possivelmente, algo haveria se desprendido dos destroços gerando tais formas.

Dessa maneira, a mente tentava convence-lo de que nada deveria preocupá-lo naquele momento. No entanto, as sombras tornaram a crescer e se movimentar lá em cima. Aguçando a curiosidade de Peter! — Alguém deve estar vindo me ajudar, finalmente! — pensou através de breves fragmentos, de uma positividade, que iam e vinham velozes como sonhos.

Seus ouvidos agora pareciam lhe pregar uma peça, pois sons de passos chegavam gradativamente, ecoando pelo salão. Não poupou esforços para distingui-los enquanto se debatia por dentro tentando se movimentar. Em vão, seu corpo chegou a fazer um estalo, como se algo se quebrasse. E sentiu muita dor naquele momento. Teria gritado se pudesse. Apenas um urro abafado saía da garganta, por um pescoço em que veias e músculos saltavam devido às contrações.

Os passos estavam bem mais altos, e lá de cima, pela entrada, a sombra tomara uma forma nítida de silhueta, e não mais um pequeno e tímido borrão escuro. Um estrondo soou atrás de Peter, como se algo ou alguém caísse pesadamente no delicado chão de madeira. Automaticamente seu corpo tremeu, e desejava incessantemente virar seu rosto para ver o que acontecia. — O que está acontecendo meu Deus! — os pensamentos estavam carregados de desespero. Podia ouvir agora o ranger das tábuas próximas a ele. Alguém caminhava em sua direção, isso era certo em sua mente.

-- Dia 24/01 ------------------- quantidade que escrevi -------------------------

Não demorou que a sensação de ansiedade se tornasse em terror. Pos agora não havia dúvidas de que havia alguém ali. Era difícil analisar com precisão, mas enquanto os olhos de Peter buscavam a face do invasor, a respiração forte chegava-lhe aos ouvidos primeiro, tirando-lhe a atenção.
— Quem está ai? — finalmente um resquício de forças expulsou algumas palavras da garganta. Essas que saíram picotadas, e quase mudas. E não houve resposta imediata. Apenas um ofegar pesado, que se aproximava. Já havia gastado o que restava de suas forças, e não teve condições de repetir a frase.
Os passos chegaram próximos à sua cabeça. E a madeira do assoalho abaixo de si envergou alguns milímetros quando os pés os tocaram. Podia agora ver os pés descalços que caminhavam em seu entorno, de alguém que o estava avaliando meticulosamente. Pés acinzentados como de cadáver. Porém delicados e finos como flores de inverno.
— Não é bom que o homem esteja só; é necessário alguém que o auxilie e corresponda! — disse uma voz feminina que soava como lâmina. E se Peter considerou que o corpo, naquele estado, proporcionara-lhe a pior dor que já sentira, não saberia ele como descrever, nem com toda sua retórica, a agonia daquela voz em sua alma.

... continua.

Ir para o topo Ir para baixo
https://constantinopla.forumeiros.com
Leyryel
Admin
Leyryel


Mensagens : 467
Data de inscrição : 17/09/2009

Primeiro Dia Completo Empty
MensagemAssunto: Re: Primeiro Dia Completo   Primeiro Dia Completo Icon_minitimeTer Mar 26, 2019 8:52 pm

PRIMEIRO DIA
I

Capítulo VI
(O Mensageiro)


Os homens já não viam a guerra há algum tempo, e não seria surpresa alguma se o aço da espada que há muito não trocava faíscas em guerra, fosse mais útil para fatiar pães nas tavernas ou na cozinha escura de algum castelo. As armaduras eram pesos desnecessários no corpo, e deixavam marcas sob as barrigas que cresciam a cada dia. E nos dentes, as manchas de vinho que entregavam a rotina. O Rei os odiava por isso. Porém, aquela tropa era liderada por Craven, que sabia extrair a qualidade e a ferocidade daqueles homens quando necessário. — São como ursos! — dizia seu líder, que fazia analogia à hibernação e a força do animal.

Craven, no entanto, fugia à regra. Pois era bem mais alto que os demais, como uma árvore. E possuía braços fortes que brandiam uma espada pesada com facilidade, arma da qual não se separava. Um homem sisudo, lacônico, e que ao pronunciar qualquer palavra era sempre frio, direto. Pouco se percebia do movimento de seus lábios, pois ficavam escondidos por de trás de uma barba espessa e suja.

— Estou vendo o fundo da minha taça, e isso não me deixa feliz! — um dos homens de Craven gritava com furor, enquanto batia na mesa e mostrava a caneca vazia para os demais, virando-a de cabeça pra baixo, passando-a na frente do nariz de cada um que o acompanhava. Homens esses que riam enquanto o companheiro bradava palavras de indignação! Craven olhava de longe, sem se manifestar.

— Só mais um instante! — respondeu ao fundo, através de gritos e de um sotaque facilmente encontrado nas terras do sul. O velho “Boca”. Homem reconhecido pela alcunha e por ser o proprietário da taverna por longos anos. — Ele espanta qualquer mulher com aquele hálito horrível! — dizia qualquer um que o conhecesse, e fosse questionado sobre tal apelido. No entanto, acumulava-se de mulheres ao redor, pois possuía mais moedas do que dentes.

Naquela noite, a taverna não estava cheia, limitava-se aos homens de Craven; os dois únicos funcionários do bar; contando com Boca, e mais algumas mulheres, que serviam as necessidades hedônicas dos soldados vermelhos, pois a tempestade que assolou as terras de fogo naquela tarde de forma tão repentina contribuiu para isso. Os lucros haviam sido afetados, pois com a tempestade os homens não chegavam e com eles também suas moedas. Os anos deram a Boca a experiência que o manteve por tantos anos de portas abertas. A noite fechava-se lá com fora com nuvens escuras, o retorno era impossível!
— Aqui está! — disse enquanto enchia a taça de vinho do soldado. Trouxe também consigo um uma porção de fritura. — Esse é por conta da casa! — sabendo que jamais seria, pois o preço sempre era cobrado em algum outro serviço. Os homens não podiam voltar, e não era difícil mantê-los entretidos com vinho, comida e mulheres. O sorriso saia de sua boca desdentada!


Bem ao fundo, Craven mantinha-se em seu isolamento. Sentia na escuridão e no vinho que tomava tão lentamente um prazer que os demais jamais sentiriam. Pois apreciava as coisas de uma forma bem singular. No começo, era preciso se esquivar dos companheiros, que cobravam pela sua presença. Mas, passado algum tempo, nasceu um respeito quase que religioso pela (palavra).

Se do lado de fora, as nuvens estavam pesadas e escuras, carregadas de uma maneira tão divinamente inexplicável. Do lado de dentro, uma quase que ingênua. Pois o que se via, era uma tempestade de odores exalada de copos vazios, balançados ao ar, de hálitos quentes, que saíam da boca dos soldados ao cantar, e de fritura, que vinha lá do fundo, das frigideiras com cebola e pimentão.
Craven, no entanto, isentara-se da festa dos homens, para apreciar a da natureza. Pois ao escolher uma mesa próxima a uma pequena janela, que mesmo estando cuidadosamente vedada, deixava o vento passar por suas frestas e entrar assobiando uma canção triste, deixava assim também, o clarão dos relâmpagos que cortavam os céus, num estrondoso grito que descia de tão alto para morrer no topo de alguma árvore. É como se a taverna estivesse em mar aberto. — pensou antes de elevar a taça de vinho aos lábios e em contemplação aos sons da tromba de água que caía pesadamente na terra.

Um homem gordo saiu rápido da cozinha, atravessou o salão principal, esgueirando-se dos soldados até finalmente chegar à mesa que Craven estava. Em suas mãos, uma garrafa de vinho e uma bandeja com carne, cebolas, pimentões e outras especiarias do sul, como cajus cortados com pimenta e sal.
Não exitou em desculpar-se pelo atraso e com muita habilidade, contrariando o julgamento das pessoas sobre os gordos, organizou a mesa rapidamente.
— Acabei me distraindo, pois seus homens, apesar de poucos, estão me dando muito trabalho. — disse Drigo, com seus olhos apertados e um sorriso sem graça.
O ajudante de Boca tinha por volta de seus trinta anos, e apesar de boa aparência, não sabia sair de uma conversa sem falar de sua juventude com saudosismo.
— Nesse tempo eu conseguia montar um cavalo como ninguém! — dizia pra Boca numa das conversas que teve sobre a conquista de um cavalo na juventude. Animal que pra seu desprazer precisou vender. — Mas hoje estou gordo, e quase não sobra dinheiro pra comer, quem dera uma montaria! — dizia com pesar nas palavras, na esperança de conseguir um aumento de salário, algo que era indiscutível por parte de Boca. — Não adianta um cavalo para quem pesa mais que um boi! — Boca, argumentava, sabendo da dificuldade de Drigo de aceitar o próprio corpo.

— Não se preocupe, busquei isolamento por conta própria. — disse Craven, enquanto cortava o pedaço de carne com uma faca fina que tirou da cintura.
— Eu passei da idade já, e quando os anos chegam a mente não trabalha mais como deveria! — sorriu enquanto enchia a taça de vinho.
— Envelhecer é para poucos! — falou antes de fazer descer toda a carne pela garganta com o auxílio do vinho. E diferente de seu grupo, triturava a carne por completo antes de consumi-la.
Drigo sorriu constrangido, pois de longe viu que Boca o encarava incisivamente. O constrangimento não se deu apenas pelo comentário, ou pelos olhares do chefe à distância, mas também pelo fato do alimento que estava sendo servido não ser o melhor da casa.


— Idiota! — sussurrou Boca, assim que Drigo voltou para a cozinha. — Craven não só é o comandante, mas também tem todo o apreço do rei! Então se for dar algo de segunda linha, que seja pra esse bando de esfomeados ali! — Boca certamente separava a comida e a bebida pelo grau de qualidade. Dentre essas, inúmeras outras artimanhas o ajudaram a lucrar. E devido a pressa, Drigo acabou cometendo o erro de misturar alguns pratos.
— Acredito que ele nem tenha percebido! — disse em sua defesa. — No entanto, o sussurro de inicio tornou-se quase em gritos, e as palavras ficaram pesadas como socos. Sorte a chuva lá fora abafar totalmente a conversa, porém as expressões e gestos exagerados não escaparam aos olhos de Craven.

O gorducho retornou aos seus afazeres na cozinha escura e suja. Boca tentou usar de sua astúcia para reparar o erro, levando mais uma garrafa de seu melhor vinho, deixando na mesa de Craven. Que por sua vez, ignorou as palavras de agrado apenas aceitando o vinho.

A estalagem ficava localizada na estrada mais antiga de acesso. O caminho era pouco acidentado, e interligava diversas regiões por outras pequenas estradas. Era possível viajar por horas dentro do extenso túnel natural, feito por árvores que se interligavam metros sob a cabeça, como se fossem mãos protetoras.
Proteção era realmente o que necessitava qualquer um que se aventurasse naquela noite. Os ventos não davam trégua, e chicoteavam as árvores torcendo seus galhos ao vento. E passada algumas horas, dentro da taverna, os homens se entregavam ao efeito do álcool. Estavam todos jogados pelos cantos, debruçados sob as mesas, ou estirados nas alcovas do andar de cima.

Drigo aproveitou a calmaria para se alimentar, e beber algo. Boca estava ao fundo, sentado junto à mesa de Craven, que após uma garrafa inteira de vinho, tornou-se um tanto mais sociável. (N.A: explicar depois porque ele não quis ficar com uma mulher e sim conversando com o dono do buteco). O suor escorria por suas bochechas, parando em sua barba que completava o rosto com simétrica. Drigo era um homem bonito em sua juventude, e ele mesmo gabava-se disso, até perceber que seu futuro era de ser um velho solitário. Como dizia de si mesmo. Estava tão corado naquele momento, assim como aqueles quando jovens se deparam com seios pela primeira vez. O estresse o tomara tanto naquela noite, que até teve vontade de tocar em alguns seios, como algumas vezes já havia feito com as garotas da casa, sem o conhecimento do chefe.

A estalagem possuía uma porta pesada e maciça, de um verde musgo quase vivo. Nela, inúmeras marcas do passado. Das brigas que foi cúmplice e vítima, quando gotas de sangue a mancharam, ou quando fora atingida por algum objeto cortante qualquer. Mas quem a desfiava agora, eram os fortes ventos. Empurrando-a, forçando entrada. A água com toda sua sutileza entrava sem convite algum, por debaixo das frestas, escorrendo pelo piso de pedras, encharcando o tapete cafona de boas vindas.
Drigo percebeu, e praguejando correu até a entrada para tentar selar a fresta com um punhado de trapos velhos que encontrou. Porém, inutilmente. A água apenas criava pressão e invadia cada vez mais rápido. E em alguns momentos chegou a escorrer tentando conte-la.

Na tentativa de se equilibrar, segurou no batente que trancava a porta, fazendo-a abrir com velocidade. Logo, a grande porta de madeira o atingiu com força, empurrando-o para trás. Ele titubeou sob as penas roliças, mas conseguindo se equilibrar. A chuva veio ao encontro de seu rosto, recuperando sua sanidade afetada pela pancada.
Usou umas das mãos para proteger o rosto, enquanto com a outra se esforçava para fechar porta. Já que era difícil manter-se de pé, com o vento contra seu peito, e o chão escorregadio. Mas logo soube como se por firme, visualizou as árvores que se curvavam numa noite aterrorizante. Jamais recordara de uma noite como aquela. Os raios não cessavam. E criavam sorrisos malignos no céu cortando de um lado ao outro.

A estrada escura só criava formas quando os raios se mostravam. Eram pequenos flashes que piscava a todo instante. E foi num deles que Drigo sentiu o coração gelar. Pois não sabia se a mente o enganava através do medo, mas viu que ao longe, como um fantasma, uma figura se aproximava cavalgando. — Impossível! Não havia como cavalgar num tempo desses! — pensou, enquanto as pernas o impediam de correr.
O cavaleiro atiçava o cavalo constantemente, e ambos pareciam não temer a fúria da natureza. Enfrentavam a chuva e o vento com coragem. Em alguns momentos o animal torcia o pescoço e relinchava alto, mas o cavaleiro o endireitava com grande destreza. Até que finalmente o corcel negro parava diante Drigo, como se fosse um gigantesco demônio!

Tempos depois, com a porta já devidamente selada. E com a chuva mais amena lá fora. Drigo olhava curioso para o estranho que o assustara momentos antes. O homem se apresentou como um mensageiro do rei. A necessidade de uma comunicação eficaz era uma das qualidades que Ávila possuía para manter a proteção e prosperidade de seu reinado. Numa terra onde a barganha era aprendida no berço, ser alvo de uma informação errada poderia transformar um rei em plebeu em poucos dias.

E foi nas trevas da ganância que surgiram os mensageiros. Esses que não eram pessoas quaisquer. Eles souberam muito bem aproveitar-se das demandas do reino, e dos comerciantes. Viviam espalhados por toda a cidade, com seus trajes escuros, frequentemente preto! Sempre encapuzados, e em seus olhos estalados nada além de cobiça! Montavam sempre grandes cavalos, os mais rápidos do reino. E certamente invejados. Pois a ousadia dos ladrões de estrada era suprimida pela crença. Não havia coragem para tomar daqueles homens suas posses. — Os mensageiros são fantasmas, não vivem mais entra os homens comuns! Não bebem, não comem, apenas cavalgam como almas sem rumo. — São espíritos da noite!

— Tenho o ajudante mais estúpido e acovardado que um homem poderia ter! — Boca lançou tais palavras ao passar por Drigo! Boca não vira naqueles homens nada de especial. Para ele, eram apenas loucos sem família. E se tinham aqueles olhos vermelhos e grandes era pelas drogas que tomavam para cavalgar por tanto tempo. E mesmo que causassem certo temor, não passavam de homens por de baixo de uma roupa fedorenta.






Mesmo a grande a quantidade de vinho não pode derrubar Craven, que não pregara os olhos durante toda noite. A chuva, seus homens que não dormiam em silêncio, e sua tempestade interna não permitiram isso. E agora, aquele homem que viera no meio da noite.
— Esse homem traz a insígnia do rei senhor! E possivelmente vem ao seu pedido. Desde que entrou não pronunciou uma palavra. E quando questionado pelo meu ajudante, apenas gesticulou. — Disse Boca com receio da reação de Craven.
— Como somos os únicos! — respondeu!
— O rei não nos deixa em paz nem mesmo com o mundo prestes a acabar! — pensou, enquanto não fazia esforço algum para tentar disfarçar a insatisfação que carregava no rosto.

Após escolher um bom lugar próximo à lareira, desejando se aquecer e secar as roupas. O mensageiro tirou de sua bolsa, cuidadosamente protegido, um pequeno pergaminho enrolado em fita escarlate. Ainda que estivesse habituado, tomou das mãos do mensageiro com desconfiança. Pois fazia parte da natureza resistente de Craven.
E se havia no comandante essa resistência que o compelia a tomar decisões sem antes avaliá-las inúmeras vezes. Abadon, seu subcomandante, agia totalmente oposto. E foi com essa impulsividade que ele se apresentou no salão.
— O que o cachorrinho trouxe pra gente? — sem medir palavras, apontou para o mensageiro, enquanto descia as escadas.
Abadon não nascera nas terras de fogo. O que se sabia era que vinha do sul, das terras além dos desertos. Era um homem baixo, de bom porte físico. Possuía, assim como Craven, traços muito parecidos com os homens do norte. Uma barba longa, um nariz quadrado e longo. Mas diferentemente, a pele não reluzia em prata, mas sim num dourado obtido pelo sol. — Enquanto eles são pratas, nós somos ouros! — disse uma vez numa conversa qualquer do passado.
— Nada que tire um homem da cama na madruga poderia ser bom! — completou enquanto buscava nas garrafas espalhadas algum resquício de sobras de bebida.
— A lua nem deve ter tocado o meio dos céus ainda. — Craven deixou as palavras saírem, de maneira serena, enquanto lia o conteúdo da mensagem.
— Quem se importa onde ela está! — apontava a garrafa vazia para Drigo, que logo lhe trouxe outra cheia. — O que há de tão divertido para nós?
— O “Serpente” deveria ter chegado nas primeiras horas do dia. Alguns batedores o viram no horizonte seguindo uma rota oposta, possivelmente para a Fenda. E com a tempestade que se deu, não seria de se admirar que tenha se perdido.
— E o que temos a ver com isso? O rei deseja que tomemos um bote pra procurar? — o escárnio exalava com o mau humor que Abadon tinha naquele momento.
— O barco é enorme, não seria difícil de encontrá-lo. — disse Craven.
— Piadas não combinam com você Craven. — respondeu ao mesmo momento que selara suas próprias palavras com álcool. — Piadas deixam as pessoas irritantes! — Completou, fazendo uma careta.
— É meu apreço por você que mantém essa sua cabeça em cima do pescoço — respondeu Craven, chamando-lhe atenção, como um irmão mais velho.






O rosto de Abadon ardia. Não sabia se pelos efeitos do álcool, ou pelo calor da lareira, que agora possuía um fogo que queimava como o sol. A noite estava alta lá fora, e a chuva dera uma trégua. Caia fina e delicada no caminho de pedras, e escorria pelas paredes como lágrimas de viúva. Drigo e Boca olhavam de canto a conversa, e não se intrometeram somente nas ocasiões que Abadon levantava por mais de uma vez, sua taça vazia. — Como ele agüenta tanto? — pensou Drigo a cada vez reabastecia.

— O que pretende fazer? — Apesar do orgulho, Abadon perguntou com o típico orgulho respeitoso que possuía.
— As praias que circundam a Fenda possuem correntezas fortes e instáveis. Faremos uma ronda, mas não iremos de barco. Creio ser mais seguro montarmos uma pequena caravana e irmos à cavalo.
— Não temos pessoal suficiente para uma caravana. E não sabemos quais os estragos causados pela tempestade. Depois de toda essa água, as estradas não serão mais as mesmas, isso se ainda existirem. — De fato, a idéia da patrulha não era assimilada de bom grado na mente de Craven. Pois havia na Fenda e em seu histórico razões para que a investida fosse cautelosa.
— Um homem precisa fazer aquilo que nasceu para fazer. Eu carrego comigo uma espada. Se eu quisesse ser um explorador, usaria um cajado e um chapéu. — Craven dava razão as palavras do companheiro. E recordara com saudosismo quando liderava em batalha, com o cavalo imponente. Pois agora, já perdera a conta de quantas vezes o sol se pos atrás das montanhas sem que precisassem desembainhar a espada.

— O rei pede para enchermos os poços, para carregar madeira, para fazer a coleta diária na cidade. O que mais vossa majestade deseja de um guerreiro? — falava em alto e bom tom, enquanto coçava o peito cheio de pelos dando a entender que tudo aquilo lhe dava alergia. — O que falta é pedir para limparmos a bunda da rainha. Garanto que ela iria adorar a oportunidade de ficar de quatro para um homem.

— Você não é obrigado a ir. É um homem livre nas palavras, como em suas ações. — disse Craven, sabendo que aquilo jamais seria dito para qualquer outro homem de sua equipe.
— Livre, mas não covarde muito menos traidor. Jurei minha espada a você, e a manterei contigo até os últimos dias. Mas sou um homem de guerra. Nasci para por a ponta de minha espada no inimigo, e vê-lo esvaziar aos poucos.
Abadon orgulhava-se de sua habilidade em batalha. E a frustração parecia ter-lhe tomado, pois se sentia gordo e fraco. A ultima vez que lutara foi por um motivo tão pífio que lhe envergonhava dizer. Seu oponente, se é que se pode ser chamado assim, era um magricela de dentes amarelos cuja falta causou menos impacto do que uma folha caindo ao chão. E daquele dia em diante, olhar para a espada fazia-o lembrar de como aquele desgraçado desonrara a sua lâmina.

— Não serei eu quem lhe dará guerra Abadon. Acostume-se com isso. — enquanto o capitão falava, Abadon emborcara a taça de vinho, escondendo seu rosto, e sua frustração. Muito comum de sua parte, pois herdara isso muito bem de seu pai. Beber e reclamar, é só o que faz esse velho, pensava a todo o momento, quando ainda jovem via-o chegar, a qualquer hora do dia ou da noite, trançando as pernas, batendo joelho com joelho até cair de fuça na terra. E agora, mais velho do que pai naquela época, dizia para si mesmo: sou um homem forte, mais do que ele jamais seria, e basta pra mim a habilidade de preencher uma cova, ou o ventre de uma mulher.

O mensageiro já havia saído, quando Drigo trancou novamente a porta de carvalho. Lá fora, o vento soprava frio e a chuva estava fina, tão fria quanto jamais se vira naquelas terras e tocavam a pele como pequenas agulhas. O ajudante chegou a sentir na cabeça uma dor maior, que o fez levar a mão até um corte que não havia percebido antes. Maldita porta, encarou-a como se fosse alguém real.

— Essa chuva veio sem precedentes. Seria prudente sairmos logo pelas primeiras horas do amanhecer. Pelo menos terei um pouco de tempo parar descansar, pensou.
— Deve ser ótimo sair de uma cama quente, para colocar os pés na lama. — Essa foi a última ironia da noite vinda de Abadon, pois estava tão alcoolizado e irritado, que sua própria voz o incomodava. E em pouco tempo, estava adormecido. Craven aproveitou da situação e também se ajeitou para dormir.
— Amanhã será um daqueles dias. Há uma promessa que faço a mim essa noite, nenhum de meus soldados terá jamais, os pés ou mãos sujas. Logo em seguida, pos se a dormir.










(Nessa cena, Craven pretende passar pelos vilarejos e “recrutar pessoas” para o trabalho pesado.)

Ir para o topo Ir para baixo
https://constantinopla.forumeiros.com
Leyryel
Admin
Leyryel


Mensagens : 467
Data de inscrição : 17/09/2009

Primeiro Dia Completo Empty
MensagemAssunto: Re: Primeiro Dia Completo   Primeiro Dia Completo Icon_minitimeTer Mar 26, 2019 11:11 pm

PRIMEIRO DIA
I

Capítulo VII
(Folhas Secas)


Algumas lembranças ficam eternizadas, e jamais se perdem. Assim como as daquele pátio, totalmente colorido, repleto de flores que subiam enroladas em pilastras brancas de mármore, e que salpicavam o chão de vermelho, rosa e branco quando o vento passava por elas fazendo uma chuva de pétalas caírem aos montes. E nem mesmo o cinza, os galhos secos em tons negros e o sol que há muito não se via por ali, apagavam essas lembranças da mente da Rainha. Ela ainda sentia o aroma das tulipas que envolviam o corrimão da escada central, e o macio das folhas, quando pela manhã, caminhava com os pés nus, costume que muito lhe aprazia e que há tempos abandonara.

Não era possível caminhar como antigamente. Pois o chão havia se deteriorado por completo. E por entre as frestas das pedras, que outrora pareciam organizadas com tanta singularidade, hoje quebradas, nasciam raízes negras e espinhosas. Talvez seguir esse caminho não seja tão tortuoso quanto minha vida é agora, a Rainha olhava com tristeza, e ao tentar segurar no corrimão de hoje, a ferrugem arranhou-lhe os dedos. O tempo e a falta de cuidado foram cruéis com aquele jardim. E comigo também, pensava Amália.

No jardim não havia somente flores que brotavam aos montes, ou plantas exóticas que eram catalogadas de maneira tão minuciosa pelos botânicos do Rei. Encontrava-se ali também, inúmeras galerias de irrigação que se interligavam. Muitas delas, com projetos inacabados e mal construídos. Um labirinto complexo, indo de grandes escadarias até fontes singelas, que se dividiam outras mais.

E se o Rei consternou-se pela falta de uso daquelas construções, não se dizia o mesmo das crianças do reino, que logo mais, encontraram motivações suficientes para fugir das obrigações e das tarefas diárias. Fazendo daquele local um centro a ser explorado e descoberto. E Ávila possuía naquela época, a curiosidade intrínseca à sua idade. E seja escondido, caminhando como um gato por aquelas vias, ou mesmo sentado nos bancos floridos ouvindo sermões, aquele jardim fizera parte de sua infância.

Poucos anos mais tarde, conheceu e casou-se ali mesmo com Amélia. Um casamento simples, porém digno, e tão idílico que caberia bem em qualquer canção, ou poema, mesmo na voz do mais simples dos trovadores. E a juventude não escondia de seus olhos ânsia pelo poder. Ele é tão belo, nem nos sonhos desejaria alguém tão perfeito, e diante do ainda príncipe, Ávila, corava-se Amélia ao encarar seu futuro Rei.

Mas os anos passaram rápidos. E nem pode perceber quantas vezes o sol precisou nascer no horizonte para o conto de fada chegar ao fim. O homem que lhe causara amor e admiração havia mudado. Os olhos não brilhavam como antes. E o dourado do cabelo estava mais apagado que os céus de inverno. Quem sou eu para julgar meu Rei, pensou em seguida, tomada pelo súbito desespero. Pois a idéia de criticá-lo não estava nos votos de casamento. E logo deixou o pensamento desvanecer.
Amélia temia que o marido pudesse ler seus pensamentos. Não que o precisasse, sendo que seus olhos gritavam os sentimentos afora. E sempre os lançava para baixo, medindo o vestido, como se algum reparo fosse necessário. Algumas vezes, o rei lhe parecia um completo estranho, e as palavras soavam silenciosas quando questionada.

Naquela manhã, a Rainha erguera-se cedo de sua grande cama, fria e vazia. E estava tão decidida, que mal pode dormir. A inquietação da noite se deu por reviravoltas de um lado a outro. O tumultuoso lençol que a cobria, de um azul acetinado, parecia formar ondas sob seu corpo. Indo de seus pés pequenos e macios, até a curva exposta de seu ombro, que encolhia toda vez que o vento do grande vitral lhe violava o corpo.

Assim que se levantou, tomou um copo de leite com mel, algumas torradas, e uvas verdes. Desejou que todo aquele adocicado, viesse a lhe tirar o gosto amargo da noite mal dormida. Vestiu-se com sua roupa mais agradável; um leve vestido branco, com fitas roxas que envolviam sua cintura com duas voltas e que terminavam num laço delicado ao lado do corpo, preso com um brasão de uma ave.
Desejou sair logo do quarto para ter com seu Rei. No entanto, as pernas pareciam-lhe presas por uma força sobrenatural! Porque estou dificultando tantos as coisas? Eu sou a Rainha..., dizia a si mesmo. Ele precisa me ouvir, mais uma vez a consciência buscava convence-la de seus diretos como esposa. Repetiu a mesma frase na mente por mais algumas dezenas de vezes, enquanto descia o longo caminho da torre, por uma escada circular de madeira, acompanhada por Crisly, a mais nova, e por mais duas damas de companhia.

E foi assim que chegou ao pátio, aquele mesmo de tantas lembranças. E a tarde não cooperava, pois mantinha um tom acinzentado, com nuvens carregadas que rodeavam ao longe, e tão baixas, comparadas ao alto castelo, que se tinha a sensação de poder tocá-las caso chegassem mais próximas. As folhas eram arrastadas por pequenos moinhos de vento, soando como uma nuvem de gafanhotos. As paredes perdiam muito do brilho brancas do mármore, e agora, lodosas, escondiam os traços da arquitetura antiga.
O rei estava parado no parapeito, com os olhos fixos no horizonte, acompanhando o dançar singelo das nuvens, e bem além, o mar que quase não se via. E justamente o segundo, parecia tomar a atenção de Ávila. Pois seus olhos cerravam de preocupação quando se perdia de vista. Logo, sua atenção e o silêncio se quebraram, quando a Rainha o chamou pelo nome:
— Ávila! Meu amor? — A segunda frase quase não saiu da boca, já que frequentemente não o tratava por aquele nome. E sem qualquer reação direta, Ávila olhou para suas próprias mãos, que carregava uma folha amarronzada, quase do tamanho de sua palma.
— Esse local lhe trás boas lembranças não é? — Assim que o Rei respondera, houve um palpitar no corpo de Amélia, que por uma fração, foi pega pela surpresa.
— Para todos nós, não! — Retribuiu a frase, com um sorriso tímido e sem jeito nos lábios.
Enquanto Ávila esfregava a folha com mais força usando as pontas de seus dedos calejados, que logo esfarelou, e rapidamente foi levada com o vento.
— As lembranças são cruéis com as pessoas. Trazem um tempo que não volta mais, trazem feridas que não se curam, e jogam a realidade sob seu colo como uma criança. — A palavra criança fez a Rainha palpitar novamente, agora bem mais do que antes.

— Desejo lhe falar, e serei direta! — Mesmo quando a coragem lhe tomava o espírito, o corpo ainda reagia com fraqueza. E a frase não saiu com o tom desejado, sendo apenas um sussurro em tom mais alto, e que quase fora abafado pelo som das folhas correndo pelo pátio. Ele precisa me ouvir, precisa ter minha atenção, pensava consigo.
— Você deveri...
— Sabe muito bem do que necessito, não? — Ávila interferiu com a voz que soava três vezes mais que a sua! Eu sei sim, gritava Amália em seu interior! Enquanto tocava o ventre, sentindo-o vazio como as galerias abaixo dela. Eu realmente sei, pairou sobre ela um ar de tristeza.
— Eu tenho me esforçado! Precisamos enfrentar essa situação, juntos. — Ela ousou pegar a mão do Rei, e toca-lo em seu ventre, acariciando-o. E aquelas mãos logo se afastaram, procurando abrigo seguro nos bolsos fundos do casaco.
— Não a culpo por se esforçar. — ela parecia não acreditar piamente nisso —, é sua natureza que está contra você! — disse o Rei.
— Nós ainda temos chance, poderíamos ao menos tentar mais algumas vezes. — agora as palavras soavam mais firmes, mas num ritmo que premeditava um choro escondido.
— Algumas vezes? Veja ao longe, a quantidade de nuvens que pairam sob meu reino! Há ali, inúmeros famintos que vêem de terras distantes como coiotes em busca do ouro de nossa terra. Em meu castelo, possuo uma filha que não me serve de nada, uma mulher que não consegue ter filho, e um trono que ficará vazio assim que eu morrer. — Sua voz alterou-se tanto, que Amélia chegou a pender para os lados. — Acho que possuo problemas demais para tentar algo com minha Rainha. E nesse momento, estou perdendo meu tempo com uma conversa que não chegará a lugar algum.

As palavras pareciam apertar o peito de Amélia. Ele não pode pensar assim, não pode, ela não soube o que falar a princípio. Por um momento e outro, até se esforçou para cortá-lo em seu discurso, mas sem êxito. E enquanto as palavras lhe eram lançadas, Amélia procurou virar o rosto por um breve e discreto momento, buscando os olhos de suas damas, que a aguardavam próximas o suficiente para escutar a conversa. Crisly, a mais nova das damas, quis responder com um gesto qualquer, mas foi compelida pela mais velha das três. Afinal, era o rei quem falava, e não era sábio contradize-lo.

A Rainha se aproximou do Rei. Pousou suas mãos brancas sob seu ombro. Meu desejo era reclinar minha cabeça em seu ombro, e sentir o cheiro de seus cabelos, porém não teve coragem. Era estranho pensar que a intimidade havia sumido há anos. E o toque lhe causava agora era um arrepio muito diferente dos que sentia no passado.
Não houve nenhuma reação do Rei, que parecia tão estático quanto uma pilastra. E se Amélia desejou que o Rei demonstrasse algum tipo de afeto naquele momento, essa esperança fora abandonada quando um soldado chegou.
— Majestade? — Um dos soldados atravessou o portão, por entre dois outros guardas, que dava acesso ao pátio. Sor Admils era um soldado de pouco mais de cinqüenta anos! Possuía uma fidelidade digna, especialmente para com a Rainha, e ao entrar, não pode deixar de curvar-se perante ela antes de dirigir qualquer palavra.
— O conselho pede uma reunião de emergência, Lorde Reinhold chegou ao salão principal com sua guarda a poucos instantes meu senhor.




Ávila pressentia mais preocupações, pois não se habituara a burocracia dos conselhos. Seu pai o exercia com facilidade e gosto. Inclusive, o orientou por diversas vezes, no entanto, as aulas que o antigo Rei lhe oferecera foram em vão.
— Levarei poucos minutos, peça que me aguardem! — O Rei não se importava se lorde Reinhold esperaria por horas, afinal, não deseja sua presença no castelo. Sor Admils curvou-se novamente perante ambos, deixando que seus olhos caíssem sob a Rainha antes de se retirar. O soldado possuía uma peculiar deficiência no olho. Pois o direito possuía uma tonalidade esverdeada, bem adversa ao esquerdo, que era castanho como a terra. O que fazia muitas vezes, as pessoas perderem alguns segundos de sua atenção encarando-o. Uma ótima chance para analisá-las ao seu modo, breve, mas suficiente.
— Será sempre assim? — questionou a Rainha! — Nossas conversas, e nosso tempo sempre são sufocados por alguma obrigação. — Ávila franziu a testa.
O Rei sempre possuiu um olhar pesado, de quem avalia a cada segundo. E seus olhos reluziam em um castanho amarelado, que Amélia muitas vezes comparava com a cor do outono.
— Esse pátio já fora um belo lugar! Flores e frutos de diversas partes do mundo chegaram aqui pelas mãos de meu pai. E havia nas mãos de minha mãe um cuidado que não creio que haja em nenhuma outra mulher no mundo, e que agora vaga por esse mar em forma de cinzas. — Amélia encolheu-se. — Aqui, guardo as lembranças mais bonitas de minha infância, e do tempo que passei com meus pais. E do nosso casamento, completou Amélia em seus pensamentos. E não quero de forma alguma trazer mais desolação para esse lugar. A natureza está morta aqui, mas as lembranças não. — Amélia sentiu os lábios tão pesados que não conseguiu move-los para responder o Rei.
— Sejamos o que resta de um Rei e uma Rainha. Façamos nossas obrigações. Eu farei nossa terra prosperar. Eu a defenderei assim como meu pai o fez. E você minha rainha, seja o que conseguir ser. Pois esperei demais de você. E sinto por ter me casado com alguém que por dentro, é tão seca quanto essas folhas.



--------------------------------- Fim de Capítulo -----------------------------------------------


NOTAS: Esse capítulo representa o desprezo que Ávila tem por sua esposa Amélia, devido ao fato dela não ter gerado um filho homem. Apresenta também algumas dificuldades do Reino, a aparição de alguns personagens que serão providenciais no futuro.

Crisly Sterne: Influencia a Rainha deixar o reino com Sorley.
Sor Admils: Guarda uma paixão secreta pela Rainha.
Lorde Reinhold: Ainda não criei nada para ele.
Ir para o topo Ir para baixo
https://constantinopla.forumeiros.com
Leyryel
Admin
Leyryel


Mensagens : 467
Data de inscrição : 17/09/2009

Primeiro Dia Completo Empty
MensagemAssunto: Re: Primeiro Dia Completo   Primeiro Dia Completo Icon_minitimeTer Mar 26, 2019 11:30 pm

Capítulo VIII
(O Despertar).


Uma fumaça dançante foi o que restou do fogo que ardeu por toda a noite na humilde lareira de Cain. E o leve cheiro de queimado foi o que o acordou. Fazendo as narinas arderem, assim como os olhos que relutavam em abrir. O sono o abatera por horas, e foi num salto assustado que pos se de pé a procura do pai.
Levou alguns segundos para que a visão se acomodasse e a imagem da bagunça ao redor tomasse forma definida. E foi com um suspiro de desaprovação que respondeu àquele cenário.

O pai estava deitado bem próximo. Dormia um sono pesado e fazia barulhos com a boca que poderia tê-lo acordado. A garota mais jovem, Beatrix, estava deitada sob uma grande bolsa de couro, da qual ela se agarrara de tal maneira a uma mãe com sua cria. Já Agnes, não estava por ali. E isso preocupava Cain, pois aquela mulher lhe parecia bem mais imprevisível do que sua companheira.
Ir para o topo Ir para baixo
https://constantinopla.forumeiros.com
Leyryel
Admin
Leyryel


Mensagens : 467
Data de inscrição : 17/09/2009

Primeiro Dia Completo Empty
MensagemAssunto: Re: Primeiro Dia Completo   Primeiro Dia Completo Icon_minitimeTer Mar 26, 2019 11:31 pm

LIVRO
I

Capítulo XIII
(O Filho da Lua)


A lua brilhava forte no céu, como um grande olho prateado, vigilante, conhecedora do destino de seus adoradores. Nem mesmo as nuvens que passavam tímidas ofuscavam seu esplendor. Sua beleza transcendia o tempo, pois havia nas histórias, relatos daqueles que se apaixonaram por ela. E que na tragédia encontraram seu destino. Quando que admirados, e prostrados frente ao seu brilho nos lagos, afogaram-se em paixão.
Porém, as histórias não se limitavam a tragédias. Pois havia também os nascidos da lua. Aqueles concebidos na luz mais intensa, no exato momento em que o círculo repousava no centro do universo. Esses possuem o caminho iluminado, são destinados a grandes feitos e conquistas. Os maiores reis do norte, com seus cabelos brancos e olhos cor de gelo, erguiam-se por esse destino. Eram batizados no cume mais alto, na noite mais fria. Para finalmente, assumirem seus tronos como grandes deuses.

— Será uma daquelas noites? — Torbaviny questionou sei rei, enquanto forçava os olhos para o céu, numa noite densa e nublada.
— Sabe muito bem que assim desejo. E se não possuísse grande apresso por ti, tomaria essa pergunta por afronta, sabendo que estou tomado pela preocupação.
— Busco forças em você meu rei. Pois também estou acometido do mesmo pesar. E não duvidaria se meu senhor subisse os grandes montes, e soprasse com os próprios pulmões, essas nuvens para além do mar.
— Os acontecimentos vão ocorrer como devem ser. E ter medo é tão natural quanto respirar.
— Seu pai teria orgulho do homem que se tornou.
— Ele fez o que pôde. O restante foi apenas vontade dos deuses e esforço próprio. — disse Njorion com tristeza no olhar.
— Você é sempre tão crítico, desde quando era jovem. Age com a mesma certeza de que há uma lua no alto por de trás desse céu nebuloso. Talvez isso que seja a causa desse rosto tão abatido que você carrega sempre. — Falou Torbaviny, com a autoridade que os anos lhe concederam.

Sem mesmo ter tempo de poder responder, Njorion voltou sua atenção à mulher que saía de dentro do quarto. Uma velha baixa, de lábios finos, envolto por muitas rugas. Seus dentes estavam em falta, e a velha mancava a cada passo. A única coisa que não parecia afetada por tal decrepitude, eram suas mãos. Firmes como árvores. E que naquela ocasião estavam cobertas por um pano branco, manchado de um vermelho intenso.

— As coisas devem manter seu equilíbrio filho. Seu herdeiro veio ao mundo, forte como aqueles que nascem de reis necessitam ser.
Njorion entendeu as palavras da velha, a mesma que há trinta e três anos fez seu próprio nascimento. E que ao longo do tempo precisava se expressar cada vez menos para fazê-lo entender das coisas.
— Ingrid está consciente, porém não consegue falar. Se quiser vê-la, já pode entrar. — Sua face não escondia o desgosto que o rei sentiria ao entrar no quarto, e de certa forma, ela tentava prepara-lo pra isso sem dizer palavra alguma.
— Obrigado mãe. Sei que fez o seu melhor. — Njorion olhou para o céu cheio de nuvens como se buscasse coragem. Em seguida, entrou na tenda sem hesitar.

Do lado de dentro, o ar estava quente, um calor que jamais se via no norte. Uma bacia com água, tingida de vermelho, esfumaçava bem ao canto. Havia roupas, peles e lençóis espalhados por todo o local. A ajudante da Velha, uma pequena magricela de cabelos loiros quase brancos, segurava com fragilidade em seus braços finos, o filho herdeiro. Á sua frente, na grande cama redonda, a rainha ofegava.

O suor fizera que com os cabelos grudassem nos seios pálidos, manchados de sangue. As mãos se esforçavam para aliviar a falta de ar, dançando como mariposas que tocam o fogo e caem mortas ao chão. Com mais um esforço para aliviar-se daquela situação, as mão não deitaram na cama naquele instante, pois Njorion a interceptara antes de tombar sobre a cama. O rei se pusera ao lado da esposa, ainda segurando suas mãos com força e tocando-as em sua barba com um beijo.
— Minha rainha! Forte e rara como uma cíclame! — A rainha esforçava-se para responder com o olhar. Porém a dificuldade fez-la derramar algumas lágrimas.
Ao olhar a jovem franzina com seu filho, Njorion sorriu de leve, e voltou sua face para Ingrid. Que tinha nas feições todo o desespero de uma mão que busca sua cria.
— Ele é lindo, não esperaria menos de minha rainha! — Suas mãos agora trocavam fortes apertos.

Torbaviny entrou pouco tempo depois, acompanhado da Velha. — Seria importante convocar a assembléia o quanto antes meu rei. — Aconselhou. Pois o fazia com grande gosto. Mesmo que não tivesse essa função determinada. Não havia tais hierarquias no norte, os deuses decidiam e o equilíbrio fazia todo o resto. Enquanto as coisas funcionassem, a vontade dos deuses estaria sendo feita.
O “conselheiro” era baixo, ainda mais comparado ao rei, que batia seus dois metros. Possuía uma barba espessa que cheirava a fumo. Os cabelos eram curtos, e escuros como um abismo, algo que fugia do padrão do norte. Em seu corpo, diversas tatuagens representavam seu amor aos deuses.

— Você está certo! Preparem meu filho, ele será apresentado ainda esta noite. E quero que todos os cuidados sejam tomados com Ingrid. — Falou o rei, enquanto levantava seu grande corpo da cama, seguindo em direção ao filho, que tomou dos braços da franzina, com muito cuidado.
A Velha interveio com uma gargalhada mórbida e exagerada, não condizente com a situação, que quase a fez engasgar! — O garotinho terá toda a atenção do mundo! É assim que um rei deve ser! — Afinal, o anoitecer chegara a pouco, e como as ondas, a Velha possuía suas nuances de personalidade durante todo o dia.

Algumas horas se passaram desde o evento. E o salão principal do rei estava agora enfeitado, e cheio, para que seu filho fosse apresentado. A mesa central estava organizada com tigelas prateadas preenchidas com frutas, carne e mel. Algumas taças também estavam dispostas com bebidas. O banquete não representava propriamente uma festa, assemelhando-se mais a um batismo. Os melhores guerreiros sentavam-se à mesa. Enquanto os demais aguardavam em pé, em respeito.

Bem à frente, os tronos de carvalho eram iluminados por uma fogueira que ardia forte. Njord estava sentado em um deles, vestido com peles de lobo negro, e sob a cabeça, uma coroa feita de ossos. Ao lado, o trono da esposa estava vazio. A velha ama tomou os cuidados de mantê-la aquecida e alimentada em seus aposentos.
Torbaviny entrou em seguida, vestido com um longo casaco azul como o mar da noite. Com os cabelos jogados para trás e a barba mais escura do que de costume.
— Estamos todos prontos? Já está quase na hora da celebração. Não devemos desapontar os deuses. — Bradou enquanto caminhava rápido no salão, verificando coisa por coisa meticulosamente.

A mente do rei estava agitada como uma tempestade. Há poucos dias estava diante da grande estátua de Lupúrius, o deus meio homem, meio lobo. Naquela ocasião, a enfeitou com flores, e acendeu velas em seu nome. Coberta com um casaco de pele e a coroa de ossos. Esculpida tão delicadamente pelos homens antigos. Aqueles que um dia presenciaram o próprio deus lobo levantar espada em guerra.
Ficou ajoelhado por horas fazendo suas preces em nome do filho herdeiro. E sussurrava de cabeça baixa, numa postura tão humilde como a de um animal. Suas mãos tocavam o solo, dividindo espaço com a testa que tocava a pedra fria do altar. E mesmo ajoelhado, o grande rei parecia um lobo gigante, que exalava coragem e virtudes. Mas ainda sim, como sentia medo do que estaria por vir. Era sensato como todo ser deveria.

Estava agora em pé, em seu salão. Nas altas montanhas, em meio a rochas pontiagudas e árvores imensas. Numa posição que inspiraria até o mais humilde dos homens, pois o castelo parecia crescer junto aos penhascos, que davam vista ao mar até onde os olhos se perdiam. No salão predominava as cores azuis e brancas. O cinza das peles de lobo nas vestes, o vermelho nas testas e os escudos azuis. Desenhos, símbolos e escrituras preenchiam o vazio das paredes e contavam a história de um povo antigo.

De um lado para outro, duas mulheres vestidas de branco, caminhavam e dançavam muito discretamente. Uma dança que movimentava apenas os braços e os longos tecidos, que arrastavam no chão. Elas deixavam as vestimentas deslizarem sobre os rostos dos guerreiros, que por alguns segundos, pareciam como cadáveres cobertos por uma mortalha. O balançar de mãos representava os fortes ventos do norte. E as mulheres, os deuses antigos envoltos pelo branco que representava a eterna lua.

O inicio da cerimônia foi solene. Os homens sentados à mesa, mantiveram-se de cabeça baixa, e tomavam a bebida uma a um. Os que estavam em pé entoavam uma triste música. Que vinha crescendo em tom, do fundo do salão até próximo dos tronos. Um som grave, com um idioma antigo, embalado por tambores que pareciam batidas de coração. As flautas, com seu som doce, amenizavam toda a lugubridade da canção.
Torbaviny subiu até o trono, e com o filho herdeiro nos braços, entregou-o ao rei. Que dando continuidade à celebração, molhou os dedos em uma taça com sangue, em seguida, marcou a testa do filho com o desenho de uma lua.
O castelo não ficava sob uma montanha à toa. Lá eles estavam mais próximos dela, da deusa prateada que iluminava o céu da noite. E os ventos traziam o sussurro dos deuses.





A ansiedade era evidente, mas não somente para Torbarviny, que via nos olhos avermelhados de seu rei um resquício das lágrimas derramadas pela rainha. Mas toda essa minúcia também lhe fazia ver a felicidade nas mãos suadas e inquietas que se apoiavam no machado.
— Todos nós estamos ansiosos meu Rei.
— Posso sentir que estão. — Njodrion respondeu com um aceno enquanto era servido de uma taça com sangue por uma das dançarinas de branco.
Repetiu o feito, mas agora não mais com o filho e sim consigo mesmo, marcando sua própria testa com o símbolo da lua. Enquanto Torbaviny levava o herdeiro nos braços. Logo, iniciou o discurso:

— Essa tarde, enquanto conversava com nossos deuses, tive lembranças do passado. De uma época em que as coisas ruins não batiam na mente de uma criança. Sempre, ao ver meu pai sair com seus navios, imaginava quantas aventuras ele passava. Porém, nunca percebi que ao retornar trazia de volta menos homens consigo. As terras do leste trazem morte. Um povo que vive na escuridão. Seus deuses estão abaixo de seus pés, em forma de ouro.






----------------------------------------------------------------- rascunho abaixo ----------------------
















PS: Observações desse capítulo que devem ser respondidas mais tarde:

— A velha têm várias personalidades que variam do infantil à sabedoria (literalmente de acordo com o período do dia).
— A criança franzina faz parte do ritual de nascimento (obrigatório ter um velho e um novo no local quando alguém nasce, para a criança sentir os dois extremos da vida).









O brilho do luar perfura a noite.
Venha acordar os lobos com seu pranto.
Inspire o ar frio e sagrado de nossa terra.
Deixe que do uivo lance o grito de guerra.


















— Enquanto eles dormem sob o ouro, nós somos os filhos da prata. A chegada do herdeiro é um sinal para lavarmos aquela terra da maldição. Não haverá mais cobiça, nem uma crença que exalta um monstro que se alimenta de sangue. O nascimento do puro veio para livrar o mundo das trevas.

Seu discurso enchia os corações. E o velho que mal se mantinha de pé, agora fazia sua voz ecoar por todo o salão. Ele parecia mais alto, seu corpo tomará proporções além da consciência. E agora sua presença naquele ambiente deixava o ar mais denso, como se a lua estivesse vindo ao encontro. Seu peito estufara, deixando-o ainda mais ameaçador. Suas unhas cresciam como garras, e por final, suas palavras encerram-se ao tornar-se um longo uivo para a lua.













O inicio da cerimonia foi solene. Os homens sentados à mesa, mantiveram-se de cabeça baixa, e tomavam a bebida uma a um. Os que estavam em pé, entonavam uma triste música. Que vinha crescendo em tom, do fundo do salão até próximo dos tronos. Um som grave, com um idioma antigo, embalado por tambores que pareciam batidas de coração. As flautas, com seu som doce, amenizavam toda a lugubridade da canção.

Torbaviny subiu até o trono, e com o filho herdeiro nos braços, entregou-o ao rei. Que dando continuidade a celebração, molhou os dedos em uma taça com sangue, em seguida, marcou a testa do filho com o desenho de uma lua. O castelo não ficava sob uma montanha a toa. Lá eles estavam mais próximo dela, da deusa prateada que iluminava o céu da noite
Ir para o topo Ir para baixo
https://constantinopla.forumeiros.com
Conteúdo patrocinado





Primeiro Dia Completo Empty
MensagemAssunto: Re: Primeiro Dia Completo   Primeiro Dia Completo Icon_minitime

Ir para o topo Ir para baixo
 
Primeiro Dia Completo
Ir para o topo 
Página 1 de 1

Permissões neste sub-fórumNão podes responder a tópicos
Oratorium Age's :: Espaço reservado :: Treze Dias de Sangue :: PRIMEIRO DIA-
Ir para: